“(...) Espinosa queria fazer de si mesmo um homem livre –
tão livre quanto possível, tendo em vista sua filosofia, se o senhor
me entende – e isso indo até o limite de seus pensamentos,
e interligando todos os elementos uns aos outros,
se Vossa Excelência puder desculpar o mal jeito da expressão”
(MALAMUD, citado por Gilles Deleuze)
RESUMO
Objetivamos, em nosso ensaio, articular liberdade de expressão e direito de autor sob a perspectiva do pensamento de Espinosa e de filósofos que com ele se agenciaram para produzir um pensamento do devir, do movimento e da potência criativa.
PALAVRA-CHAVE
Liberdade de expressão. Direito de autor. Espinosa. Foucault. Deleuze.
ABSTRACT
We intend to articulate freedom of expression with copyrights from the perspective of Spinoza and philosophers that were inspired by him on the production of a thought of the becoming, movement and creative power.
KEYWORDS
Freedom of expression. Copyrights. Spinoza. Foucault. Deleuze.
APRESENTAÇÃO
Pretendemos, em nosso ensaio, articular liberdade de expressão e direito de autor sob a perspectiva do pensamento de Espinosa e de filósofos que com ele se agenciaram para produzir um pensamento do devir, do movimento e da potência criativa. Não temos a intenção de apontar soluções jurídicas para questões envolvendo conflitos entre liberdade de expressão e direitos autorais, o que já tivemos a oportunidade de desenvolver em outra sede1, mas sim de problematizar2 as relações entre ambos, a partir do pensamento espinosista.
Baruch de Espinosa (1632-1677) foi um pensador de família judaica de origem
portuguesa, que nasceu em Amsterdã, na Holanda, e que veio a receber o chérem, que é o equivalente hebraico da excomunhão, por defender que Deus é o mecanismo imanente da natureza.
De acordo com Cláudio Ulpiano, mais importante do que a obra de Espinosa são
os processos espinosistas que se manifestam em pensadores que com ele se
articularam3. É o caso de dois grandes filósofos da segunda metade do século XX, Michel Foucault e Gilles Deleuze, que também sustentarão as ideias que pretendemos desenvolver neste nosso ensaio.
O pensamento de Espinosa não é normalmente estudado nos cursos de Direito,
muito provavelmente pelo fato de ser considerado, ao mesmo tempo, antijusnaturalista e antipositivista, além de questionar conceitos jurídicos tradicionais, como a ideia de poder (que é contraposta pela de potência da multidão); sujeito (que é pensado enquanto singularidade); e, especialmente, liberdade (por ele tratada não como vontade livre, mas como necessidade, produção de novos pensamentos e novas formas de vida), que será o primeiro tema a ser tratado neste ensaio.
A partir do conceito de liberdade em Espinosa, procuraremos demonstrar que a
expressão artística, enquanto manifestação da singularidade, da criação de si e de uma estética da existência, é fruto do encontro com o caos, constituindo a gênese do processo criativo.
Na sequência, discorreremos sobre como Foucault pensou a questão do
enfraquecimento do sujeito cartesiano a partir da linguagem literária e do aparecimento do ser da linguagem e da função-autor, conceitos esses que repercutem na teorização acerca dos fundamentos do direito de autor.
No item seguinte, retomaremos o conceito de singularidade de Espinosa para
contrapô-lo ao de sujeito, de modo a examinar os processos de subjetivação e autoria enquanto formas de empoderamento.
No último item, discorreremos acerca do conceito de estado civil em Espinosa e
de sua concepção da liberdade de expressão, para, nas considerações finais, podermos fazer a articulação desta última com o sistema do direito de autor.
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* Ensaio publicado no livro Estudos de direito intelectual em homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão. 50 anos de vida universitária. Organizado por Dario Moura Vicente; José Alberto Coelho Vieira; Alexandre Dias Pereira; Sofia de Vasconcelos Casimiro; Ana Maria Pereira da Silva. 1ª ed. Lisboa: Almedina, 2015.
** Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós Doutor pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob financiamento da FAPESP.
1 A esse respeito, ver CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2005, p. 195-198.
2 Foucault trata a questão da problematização como o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento, procurando saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente ao invés de legitimar o que já se sabe, de tal forma a tornar tudo o que passa pela vida, matéria de pensamento, produzindo, assim, novas relações entre as coisas. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, p. 9-16.
3 ULPIANO, Cláudio. Kant e Espinosa: moral e ética – sobre os modos de existência, aula disponibilizada em <http://claudioulpiano.org.br>, consultado em 12 de abril de 2015.
1. A Concepção de Liberdade em Espinosa
O tema da liberdade é normalmente tratado como sinônimo de livre-arbítrio, ou ainda, como liberdade de escolha entre bem e mal, com base na consciência do sujeito, que teria uma vontade livre, na linha de pensamento traçada, principalmente, por Platão, Santo Tomás de Aquino e Kant.
Espinosa rompeu de forma bastante vigorosa com essa teoria clássica a respeito
da liberdade, que tinha como base dois grandes sistemas morais: o platônico e o tomista.
Posteriormente, no século XVIII, o conceito de liberdade de Espinosa também iria se contrapor ao sistema moral pensado por Kant.
Há uma distinção clássica em filosofia, especialmente na obra de Kant, envolvendo a oposição entre coisa em si e fenômeno. A coisa em si é tudo aquilo que existe por si mesmo, independentemente de qualquer relação com um sujeito. O que depende de relação para existir constitui, para Kant, o fenômeno. Como exemplo decoisa em si, podemos mencionar as essências platônicas, que existem independentemente de um sujeito. O objetivo do filósofo platônico é conhecer as coisas em si mesmas (as essências), o que pressupõe uma prática permanente de rejeição a tudo o que está no âmbito do fenômeno4.
Para Platão, existe uma essência superior ou hiperessência, por ele chamada de
bem, que funcionaria como uma espécie de luz que ilumina as demais essências. Na perspectiva platônica, a ligação entre essências é fundamental para o conhecimento de uma determinada essência pela razão. Apesar de a hiperessência (o bem) iluminar as demais essências, o fato de estas não se relacionarem com aquela resulta que seria impossível conhecer o bem5.
Os gregos, no modelo platônico, entendiam que a vida moral teria que ser
regulada pelo bem. Entretanto, como, para Platão, não seria possível conhecer o bem, foi preciso indicar um representante dele no mundo, que veio a ser a lei.
Consequentemente, quando o grego platônico desejava realizar uma prática moral, bastava obedecer às leis que ele já estaria, automaticamente, sendo justo e virtuoso6.
As leis deveriam, assim, ser obedecidas não por elas mesmas, mas em virtude de representarem o bem. Isso significa dizer que, se fosse possível conhecer o bem, não haveria necessidade de leis. Porém, na perspectiva platônica, como é impossível conhecer o bem, a obediência à lei já seria, por si mesma, uma prática moral7.
Esse modelo platônico foi retomado por Santo Tomás de Aquino na Idade
Média. Segundo Ulpiano, essa retomada resultou praticamente no mesmo conceito platônico, exceto pelo fato de que Tomás de Aquino substituiu o bem por Deus.
Entretanto, como o conhecimento de Deus também é uma questão problemática, a obediência à lei como solução adotada para a prática moral na filosofia platônica também valeu para a filosofia tomista, com a única diferença de que, enquanto na primeira, a lei é o caminho para se atingir o bem, na segunda, ela é o caminho para se atingir Deus8.
Essas duas formas de moral estão evidentemente sustentadas em valores
transcendentes, representados pelo bem ou por Deus. Em contraposição a esses dois modelos de moral, Espinosa opõe uma ética dos modos de existência imanentes, rompendo, assim, com uma longa tradição moral sustentada em valores transcendentes.
O valor transcendente da teologia cristã é Deus. Quando lemos a obra de
Espinosa, a primeira coisa que encontramos é Deus, dando-nos, assim, a impressão de que Espinosa estaria tratando de um Deus transcendente. Contudo, o Deus de Espinosa é um Deus imanente. Para Espinosa, Deus e natureza são a mesma coisa9. Segundo Deleuze, a grande tese do espinosismo é de que “há uma única substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive Natura, sendo todas as ‘criaturas’ apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância”10. Nessa linha, Espinosa abandona a ideia de Deus criador e pensa Deus como produtor e como atividade. Deus (ou natureza)
seria, assim, aquilo que produz tudo o que existe11.
No entendimento de Espinosa, a teologia tradicional acaba negando a
onipotência divina ao invés de afirmá-la, uma vez que tem por base um conceito
antropomórfico de Deus em um cenário em que o ser humano se torna um império na natureza, ao se constituir na sua imagem e semelhança12.
Ulpiano explica que se a ideia de vontade é articulada com a ideia de causa – o
que significa que a vontade seria sempre determinada –, conclui-se que ela não poderia ser livre. Nessa linha de raciocínio, a vontade somente seria livre se tivesse início nela mesma, de forma independente de uma causa anterior. A isso dá-se o nome de causa livre ou causa de si13.
De acordo com a teologia tradicional, a vontade seria a única instância possível
de não ser condicionada pela causalidade, o que significa que ela seria livre. Deus, assim, seria dotado de uma vontade incondicionada, determinada por si mesma e não por outra causa qualquer, caracterizando-se, pois, como causa livre. Como o homem seria feito à imagem e semelhança de Deus, o entendimento da teologia tradicional é de que a liberdade humana também teria como fundamento a vontade enquanto causa livre14.
Tendo em vista, porém, que o Deus de Espinosa é sinônimo de natureza e, nesta, não pode haver vontade livre, Espinosa conclui que, pela natureza, não se poderia explicar a liberdade. Em outras palavras: a liberdade não poderia ser articulada com a ideia de vontade15.
Nessa linha de raciocínio, somente poderia haver uma solução: separar a
liberdade da ideia de vontade, uma vez que Deus, se por acaso for livre, não poderia sêlo pela vontade. Ao separar a liberdade da ideia de vontade, Espinosa passa a articular a liberdade com a ideia de natureza16. Disso decorre que, para Espinosa, a ação divina não se daria pela liberdade da vontade de Deus, mas pela necessidade de sua natureza17.
Marilena Chauí explica essa questão, dizendo que
a tradição normativa submete a ética a imagens de coisas boas ou más
em si e apresenta bom e mau como modelos externos da conduta virtuosa
(conforme ao bem) e viciosa (conforme ao mal), identificando a
liberdade com o poder da vontade para escolher entre valores postos
como regras e normas para o agente18.
E acrescenta o seguinte:
a ética espinosana subverte essa dupla tradição porque sua viga mestra é
a ideia de que o homem é efeito imanente da atividade de uma potência
absolutamente infinita, Deus, que engendra a Natureza sem separar-se
dela. Porque efeitos imanentes à causa infinita, os seres humanos, como
todas as coisas singulares finitas, são uma parte da Natureza e uma
expressão singular do ser absolutamente infinito. A liberdade não é livrearbítrio da vontade – seja esta divina ou humana –, mas a ação que segue necessariamente das leis da essência do agente, ou, em outras palavras, a liberdade não é a escolha entre alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência. Eis por que Espinosa introduz a enigmática expressão livre necessidade com que indica que liberdade e necessidade não se opõem e que a primeira
pressupõe a segunda19.
A ideia de liberdade em Espinosa encontra-se já na abertura de seu livro Ética
nos seguintes termos:
diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua
natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou
melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra a existir e a
operar de maneira definida e determinada20.
Ainda de acordo com Espinosa, “ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e bem
viver que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato”. Para ele, “não se pode conceber nenhuma virtude que seja primeira relativamente a esta (quer dizer, ao esforço por se conservar)”, pois “o esforço para se conservar (chamado conatus) é o primeiro e único fundamento da virtude”21.
Portanto, a liberdade, para Espinosa, pressupõe a causa de si. É livre quem age
segundo si próprio e existe de acordo com a necessidade da natureza. Como diz Luiz Fuganti, “Deus é uma usina de produção de si. Se somos parte desse Deus, dessa natureza, temos que nos tornar uma usina de produção de nós mesmos”22.
Ulpiano coloca essa mesma questão de outra forma, dizendo que, no pensamento de Espinosa, a natureza é livre quando não há nada que impeça a sua expansão. Como a natureza é o campo em que as potências se manifestam, a conexão liberdade-natureza feita por Espinosa resulta na ideia de liberdade enquanto expressão de uma potência, isto é, como o poder de algo se exprimir23. As práticas de coação seriam, assim, contrárias à liberdade, pois impediriam o indivíduo de expressar sua potência e de criar novas formas de vida.
Porém, como os homens estão em confronto com outros homens e com as coisas do mundo, é fácil compreender que, num primeiro momento, eles não poderiam efetuar as suas próprias naturezas porque as forças que vêm de fora os constrangeriam. Assim, a questão de Espinosa seria investigar em que situações o homem seria a causa ativa das suas próprias ações e, além disso, se o homem, de fato, poderia ser produzido por forças que vêm de dentro, de forma a gerar sua liberdade. Essas forças que vêm de dentro, revisadas com uma linguagem mais contemporânea, é o que Nietzsche chamará de vontade de potência24. Para responder a essa questão, Ulpiano explica que se deve
recorrer à epistemologia de Espinosa, de forma a que a liberdade seja articulada com o chamado terceiro gênero do conhecimento. Vejamos, sucintamente, no que consistem os três gêneros do conhecimento na epistemologia de Espinosa25.
O primeiro gênero do conhecimento é o gênero da consciência ou imaginação.
Espinosa entende que o que chamamos de consciência é apenas efeito ou resultado dos encontros que os nossos corpos fazem com as coisas da natureza. Nesse encontro, os corpos recebem marcas, signos. Isso implica dizer que a consciência não é ativa, mas sim o resultado de forças que vêm de fora, ou ainda, a sede do conhecimento inadequado, das ideias confusas, do ouvir dizer e da experiência vaga26. Portanto, nesse primeiro gênero do conhecimento, a servidão é total, não havendo espaço para a liberdade.
O segundo gênero do conhecimento é a razão (também chamada de conhecimento), que é uma prática em que o homem já começa a ter alguma atividade, permitindo que ele tenha ideias adequadas. Com a razão, o homem passa a entender as noções comuns da natureza, a relação entre as coisas e a conhecer aquilo que está no mundo. Apesar de a razão permitir ao homem ultrapassar a consciência e conhecer a realidade, ela ainda não permite que o homem seja inventor de novos modos de vida27.
O terceiro gênero do conhecimento é a intuição ou poder de invenção, considerado por Espinosa como conhecimento adequado. Ao invés de apenas conhecer o que está no mundo, a intuição permite ao ser humano inventar e criar. Enquanto a razão busca a verdade e o que seria considerado moral, o terceiro gênero do conhecimento objetiva produzir novos modos de vida, novas linhas, novas formas de pensamento e de arte. Segundo Ulpiano, com o terceiro gênero do conhecimento, Espinosa já anunciava no século XVII a fadiga que o mundo estaria nos causando e que seria necessário produzir algo de novo para que a vida pudesse acontecer. Esse terceiro gênero do conhecimento é o que Nietzsche, Foucault e Deleuze chamarão de pensamento e que nada mais é do que o poder de produzir novas formas de vida e outras maneiras de existir e que não pode ser confundido com a inteligência, nem com o ato de pensar do plano psicológico28.
É o terceiro gênero do conhecimento que se articulará com a questão da
liberdade. Segundo Espinosa, a liberdade somente será alcançada por meio da força maior da vida, representada pelo pensamento. O grande adversário da liberdade seria, assim, a superstição, o que demonstra que o pensamento de Espinosa é antiplatônico e o quanto ainda somos modelados pelo platonismo. A liberdade somente poderia ocorrer se o pensamento passasse a ser o governador da nossa existência. Para tanto, seria preciso criar algo diferente em nossas vidas, seja na arte, na filosofia, nas ciências, no amor ou em qualquer outro campo de nossa existência. Apenas o terceiro gênero do conhecimento seria capaz de produzir uma arte poderosa, de modificação e transformação da vida29, que é o que veremos a seguir.
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4 Cf. ULPIANO, C. Aula cit.
5 Idem.
6 Idem.
Simone Goyard-Fabre assim se expressou sobre o pensamento platônico: “Na República e na Natureza, as dissenções e as dissonâncias devem ser banidas: na Cidade, sua eliminação é obra da lei que imita a lei cósmica”. GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica, p. 22.
7 ULPIANO, C. Aula cit.
8 Idem.
9 Idem.
10 DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática, p. 23.
11 ULPIANO, C. Aula cit.
Cláudio Ulpiano explica que, segundo a teologia tradicional, a ideia da criação da natureza por Deus
pressupõe o entendimento de que a natureza não existia anteriormente a essa criação. Portanto, para Espinosa, o Deus da teologia tradicional teria mudado de opinião a partir do momento em que decidiu fazer algo novo (criar a natureza) ao que existia anteriormente. Idem.
12 Cf. GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza, p. 69.
13 ULPIANO. C. Aula cit.
14 Idem.
15 Idem.
16 ULPIANO, C. Aula cit.
Segundo Cláudio Ulpiano, ao articular a ideia de liberdade à de natureza, Espinosa estaria fazendo um novo agenciamento da ideia de liberdade, quebrando as fronteiras euclideanas do sistema e, assim, permitindo que determinadas ideias façam migrações, descolamentos e se juntem a outras ideias. E dessas junções, outros tipos de pensamento começariam a aparecer. Esse seria o poder que o pensamento tem de fazer novas sínteses, ainda que nos deparemos com determinadas ideias que parecem estar soldadas a outras ideias. Para Ulpiano, o que teríamos que aprender é que todas as associações entre ideias são associações sintéticas que podem ser descoladas e unidas a outras ideias, permitindo novos agenciamentos. Idem.
17 GUIMARAENS, F. de. Ob. cit., p. 70.
18 CHAUI, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa, posição 1244.
19 Ibidem, posições 1244 e 1250.
20 SPINOZA, Benedictus de. Ética, Parte I, Definição VII, p. 13.
21 Ibidem, Parte IV, Proposições 21 e 22, p. 171.
22 FUGANTI, Luiz. Ação cultural como produção de subjetividade. Palestra disponível em
23 ULPIANO, C. Aula cit.
24 Idem.
25 Idem.
26 Idem.
27 Idem.
28 Idem.
Cláudio Ulpiano menciona que Foucault é um filósofo do terceiro gênero do conhecimento. Segundo Ulpiano, Foucault, em sua terceira fase, desenvolveu essa ideia de liberdade articulada com o pensamento. Para tanto, Foucault voltou-se para a Grécia antiga e verificou que, para o grego da Antiguidade, o homem somente é livre quando suas forças ativas dominam as forças de fora que tendem para a submissão. A partir desse conceito, os gregos produzem uma estética da existência. Normalmente pensamos a estética em torno da arte, mas os gregos pensaram a estética enquanto modo de existência, que ocorre quando as forças ativas dominam as forças reativas, ou ainda, sempre que o pensamento (ou o terceiro gênero do conhecimento, segundo Espinosa) domina a vida. Assim, o grego se preocupava em produzir essa vida superior e livre, porque, para ele, a liberdade só é conseguida quando o indivíduo dirige a sua própria vida ou quando a causa da existência vem de dentro do homem. Ulpiano diz que, a partir dessa associação Foucault-Espinosa, podemos pensar a formação da subjetividade fora de linhas de pensamento clássicas, o que permite novos meios para se entender a sua formação, pois o que o grego da Antiguidade estaria visando era a produção de um sujeito com direito à liberdade, à diferença e à metamorfose. Segundo Foucault, essa concepção da subjetividade viria a ser capturada ao longo da história, uma vez que os tempos atuais preocupam-se apenas em produzir individuação e identidade. Idem.
A esse respeito, ver FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque), 8ª edição. Rio de Janeiro: edições Graal, 1985, especialmente às p. 43-73.
29 ULPIANO, C. Aula cit.
2. Encontro com o Caos: a Gênese da Criação Artística
A liberdade de expressão, para Espinosa, deve ser entendida a partir da sua
concepção de liberdade, enquanto expressão de uma potência.
Para tratarmos da liberdade de expressão no campo artístico – que é o que
importa aqui, de forma a podermos fazer sua articulação com o direito de autor –, é essencial entender a gênese da criação artística com base no conceito de encontro formulado por Espinosa e refletido por Deleuze.
Espinosa entende que não há leis da natureza, mas sim encontro de corpos, que
não são apenas os humanos, mas tudo aquilo que pode ser considerado vivo. Quando um corpo se encontra com outro, esse outro corpo pode com ele se compor (no sentido de que esse outro corpo é “bom” para ele) ou se decompor (caso em que esse outro corpo lhe seria “mau”). Nas palavras de Deleuze, a potência de agir ou a forma de existir aumenta ou diminui, dependendo desse encontro de corpos. A passagem a uma perfeição maior (e, portanto, o aumento da potência de agir) denomina-se afeto ou sentimento de alegria, ao passo que a passagem a uma perfeição menor (ou ainda, a diminuição da potência de agir), tristeza30.
Desde Platão, entende-se que o pensamento não surge espontaneamente e que ele precisa ser forçado a aparecer. Para ele, as forças que fazem o pensamento aparecer decorrem da contradição. No século XX, especialmente com o desenvolvimento da física não-linear, passou-se a entender que essas forças que ocasionariam o pensamento seriam o caos, que pode também ser entendido como campo transcendental, singular ou pré-individual, conceitos trazidos por Gilbert Simondon para explicar o mundo em dois planos distintos: o plano do individual (que envolveria o físico e o lógico) e o do singular (que seria o transcendental ou o caos)31. O plano transcendental seria, assim,
anterior ao individual. Deleuze reforça esse mesmo entendimento de Simondon, dizendo que o mundo é dividido em dois: de um lado, o mundo físico e lógico e, de outro, o transcendental (que não é regido por regras físicas e lógicas)32.
Deleuze diz que o transcendente não se confunde com o transcendental. E
acrescenta que “na ausência de consciência, o campo transcendental se definiria como um puro plano de imanência, já que ele escapa a toda transcendência, tanto do sujeito quanto do objeto”33.
Portanto, o singular (pré-individual, transcendental ou caos) é algo que não se
apreende pela sensibilidade, pois esta somente consegue apreender o individual.
Também o intelecto não tem o poder de apreender o singular. Com o aparecimento do transcendental, dá-se um passo além do campo físico e lógico da individualidade. Abrese, assim, um terceiro elemento, que se manifestará nos campos da arte, da filosofia e das ciências e, consequentemente, um mundo totalmente novo a ser descoberto34.
Segundo Ulpiano, na linguagem terapêutica do século XX, que obteve alto
sucesso até meados da década de 1980, o transcendental foi chamado de inconsciente, tendo sofrido uma ramificação importante: enquanto, para Freud, o inconsciente é um dos componentes da nossa psicologia (com seus atos falhos, complexo de édipo e outros “fantasmas”), para Deleuze e Guattari, o inconsciente localiza-se fora dela, no chamado mundo transcendental, sendo constituído por um campo de forças, afetos, alegrias e de produção, colocando a vida, assim, como altamente poderosa35.
Como as pessoas fazem do ego o centro de suas vidas e considerando que este
apenas se realiza no campo utilitário, o escultor Constantin Brâncusi disse que o
encontro com o caos no processo de criação artística somente poderia aparecer com a quebra do ego36. Sem sermos reducionistas, esse encontro com o caos transparece em artistas como Proust, Artaud, Kafka, Borges, Godard, Cassavetes, Glauber Rocha e tantos outros.
Deleuze escreveu a respeito do trabalho de alguns desses artistas e sua relação
com o caos nos seus processos criativos, como Lewis Carroll, que criou Alice no país das maravilhas, dentre outras obras. Carroll era um professor de Lógica na
Universidade de Oxford e tinha dois planos de vida distintos: o plano lógico (enquanto professor e pesquisador de Lógica) e o transcendental (invertendo os processos da natureza, lógicos e físicos), enquanto criador de Alice37.
Deleuze também escreveu sobre a obra de Francis Bacon (que foi um dos pintores mais marcantes do século XX e cujas pinturas fogem do modelo de representação38) e sobre o cinema de Dziga Vertov (que descobre que, por meio do corte e da montagem, seria possível unir uma voz dita em 1930, na Rússia, com um grito dado em 1980, nos Estados Unidos, saindo, assim, das leis lógicas e físicas e da noção cronológica de tempo39).
O pensamento não deve ser entendido apenas com base no homem, mas na vida de forma mais ampla. Essa afirmação é de extrema importância para um dos exemplos mais surpreendentes de que o pensamento pode mergulhar no caos e a partir daí produzir uma obra de arte: trata-se da obra do artista Olivier Messiaen, que além de ser um dos grandes músicos do século XX, também é ornitólogo e, como tal, um estudioso do canto dos pássaros, que é utilizado como inspiração para suas obras. Messiaen faz uma distinção entre quatro tipos de canto de pássaros. Os dois primeiros tipos são: o canto do amor, por meio do qual o pássaro macho seduz a fêmea, permitindo, assim, a reprodução da espécie e o grito de alarme, que se manifesta quando há algum perigo eminente. Esses dois cantos estão a serviço do corpo orgânico, das funções do órgão, no sentido de que têm como único objetivo prestar um serviço à espécie40.
Deixaremos de lado o terceiro tipo de canto dos pássaros, para nos focar no
quarto tipo que é o que aqui nos interessa. Segundo Messiaen, quando o crepúsculo ou a aurora emitem a sua luz violeta, alguns pássaros produzem um canto que é tão mais forte quanto mais bonitos e longos forem o crepúsculo e a aurora e quanto mais intensa for a emissão dessa luz violeta. Esse canto não tem qualquer objetivo orgânico e não presta qualquer serviço à espécie. Trata-se de um canto gratuito, de uma beleza extraordinária e com uma enorme variação de temas e motivos41.
Segundo Messiaen, quando há esse encontro, nasce o ritmo, que não se confunde com cadência. O ritmo não é algo que o pássaro tenha dentro dele, mas algo que emerge desse encontro com o crepúsculo. Nesse quarto tipo de canto, o pássaro gera ondas rítmicas que se encontram com as forças da natureza. E quando há esse encontro, emerge aquilo que pode ser chamado de sensação, entendida como a potência que um corpo vivo possui de produzir uma onda de intensidade que, no caso dos pássaros, são os ritmos e, no caso da natureza, as misturas de cores, luz e calor. Segundo Messiaen, quando essas duas linhas se encontram, emerge o personagem rítmico, que não é nem um sujeito nem um pássaro, mas uma onda que se serve do corpo do pássaro42.
Ulpiano traz outro exemplo do surgimento do personagem rítmico: o cinema de
John Cassavetes, que trabalha o corpo, mas não um corpo orgânico e sim um corpo histérico, ou ainda, um corpo sem órgãos, termo cunhado pelo dramaturgo Antonin Artaud e que foi tema de reflexão por Deleuze43. Para Ulpiano, o corpo histérico convive com o corpo orgânico e o que se passa nele são pensamentos relativos a gestos, posturas e atitudes, como insônias, sono, tristeza, enfim, todas as linhas de errância, abstratas e difíceis, que o corpo produz44.
Segundo Messiaen, poucos artistas conseguiram produzir ritmo, pois este é uma
invenção da vida. Isso significa que a natureza é capaz de produzir uma obra de arte ou, dito de outra forma por Ulpiano, “não foi o homem que inventou a arte. Esta é muito anterior ao homem”45.
Entretanto, a arte que é consumida em larga escala é a da consciência. Fuganti
questiona a arte que visa “conscientizar”, ou ainda, os métodos pedagógicos de
apreciação da arte e as investigações a respeito das intensões do artista quando cria (“o que a obra quer dizer”). Segundo ele, quando se coloca intencionalidade no ato (incluindo aqui o processo criativo), perde-se intensidade46.
Essa questão remete às relações entre os processos criativos, o ser da linguagem e a função da autoria – que decorrem da própria concepção de sujeito e do poder que lhe é atribuído pela lei –, conforme discorreremos a seguir.
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30 DELEUZE, G. Ob. cit., p. 57.
31 A esse respeito ver SIMONDON, Gilbert. Le individu et sa genese phisico-biologique. Paris: PUF, 1984.
32 Cf. ULPIANO, C. A experiência do transcendental, aula disponibilizada em <http://claudioulpiano.org.br.>, consultada em 12 de abril de 2015.
Segundo Deleuze, o transcendental “se distingue da experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu. (...) falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que compõe o mundo do sujeito e do objeto. Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental”.
DELEUZE, G. A imanência: uma vida..., p. 10.
33 Idem.
34 ULPIANO, C. Aula cit.
35 Idem.
A esse respeito, ver DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1.
(Tradução de Luiz B.L. Orlandi). São Paulo: Ed. 34, 2010.
36 Cf. ULPIANO, C. Aula cit.
37 Ver DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. (Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes). São Paulo:
Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1974, especialmente no prólogo.
38 Ver DELEUZE, Gilles. Francis Bacon – lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
39 Ver DELEUZE, Gilles. Cinema I: a imagem-movimento. (Tradução Stella Senra). São Paulo: Brasiliense, 1985.
40 ULPIANO, C. Aula cit.
41 Idem.
42 ULPIANO, C. Corpo orgânico e corpo histérico, aula disponibilizada em <http://claudioulpiano.org.br.>, consultado em 12 de maio de 2015.
43 Ver DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, Vol. 4. (Tradução de Suely Rolnik). São Paulo: Editora 34, 2012.44 ULPIANO, C. Aula cit.
45 ULPIANO, C. A experiência do transcendental, aula disponibilizada em <http://claudioulpiano.org.br.>, consultado em 12 de maio de 2015.
46 FUGANTI, L. Palestra cit.
3. Ser da Linguagem e Função-Autor
Quando se aborda a questão do poder no âmbito jurídico, normalmente se pensa no Estado e nas suas diversas formas de totalitarismo, especialmente com relação aos direitos individuais. Os movimentos de maio de 1968, na França, detonam um processo de aprofundamento dos questionamentos a respeito da ideia de poder, que passa a ser pensado, também, no âmbito das instituições e do próprio sujeito. Foucault aparece como o grande pensador das formas de poder e da dissolução do sujeito, que acaba por envolver o próprio conceito de autoria.
Em seu livro As palavras e as coisas47, Michel Foucault declarou a morte do
sujeito com base em uma revolução lingü.stica que proclama o final da antropologia moderna em prol de outra, calcada na ação do impensado sobre a consciência, notadamente, a psicanálise e a etnologia. Nos anos 1960, Foucault partilhou de algumas ideias do grupo estruturalista, dentre elas, a de que existem conhecimentos e discursos, realizados de forma não autoral, advindos de um campo de pensamento que prescinde do sujeito e do conhecimento cartesiano. Dessa forma, o lugar antes ocupado pelo “eu penso” é substituído pelo “algo pensa em mim”, o que remete a uma recusa ao humanismo48.
A fragmentação do sujeito é uma questão presente em toda a obra de Foucault. A partir dos textos de Maurice Blanchot sobre a chamada experiência do fora na literatura – que consistiu em pensar a linguagem literária enquanto fundadora da sua própria realidade, em oposição à ideia de que ela visaria atingir o mundo exterior para nele se engajar –, Foucault procurou mostrar como a noção de homem se enfraqueceu nos séculos XIX e XX49.
Ao ler Blanchot, Foucault parte do desaparecimento do eu que fala. A partir da
sentença falo, vem o argumento de Foucault de que, na literatura, a linguagem está livre do estritamente pessoal. Para ilustrar essa ideia, Foucault distingue o falo do penso, que representa o cogito cartesiano: enquanto o penso é uma expressão reflexiva por excelência, uma vez que remete a um sujeito soberano, o falo extingue qualquer possibilidade de reflexão pelo fato de carregar um paradoxo: o eu que o pronuncia não é um eu idêntico a si, pois é um eu que não representa um sujeito, que não se refere a si mesmo50. Segundo Foucault o eu falo funciona ao contrário do eu penso. Este conduzia de fato à certeza indubitável do Eu e de sua existência, aquele, pelo contrário, recua, dispersa, apaga essa existência e dela só deixa aparecer o lugar vazio. (...). A fala da fala nos leva à literatura, mas talvez também a outros caminhos, a esse fora onde desparece o sujeito que fala. É sem dúvida por essa razão que a reflexão ocidental hesitou por tanto tempo em pensar o ser da linguagem: como se ela tivesse pressentido o perigo que constituiria para a evidência do eu sou a experiência nua da linguagem51.
Em sua conferência intitulada O que é um Autor?, proferida, em 1969, para a
Société Française de Philosophie, Foucault recusa-se a, simplesmente, celebrar o desaparecimento do sujeito. Ao invés disso, separa a ontologia do homem daquela do autor por meio de uma categoria que ele define por função-autor, entendida como uma “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”, que seria algo histórico e estruturalmente variável, conforme os pressupostos culturais dos sistemas de arranjos discursivos específicos. Para Foucault, o autor funciona como princípio de agrupamento e foco de coerência de um discurso que seria sagrado, diferentemente do discurso comum, que é produzido diariamente. Dessa forma, o autor passa a assegurar uma função de
classificação, agrupamento e delimitação de determinados textos, pois a função-autor serve para determinados discursos e não para todos52.
Nesse contexto, a autoria surge “na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores”53. Para Foucault, as leis de direitos autorais funcionariam como tentativas de controle do que se fala e de como se fala, em um momento da história em que os discursos começaram a adotar uma posição mais transgressora e os processos de cópia se proliferaram54.
No entendimento de Foucault, havia na Antiguidade e até o medievo europeu,
duas funcionalidades autorais bem distintas e concomitantes: de um lado, textos que hoje chamaríamos de literários, que eram recebidos, postos em circulação e valorizados sem que se pusesse em questão a sua autoria, já que “o seu anonimato não levantava dificuldades, a sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era uma garantia suficiente”; e de outro, textos que hoje chamamos de científicos e que “eram recebidos na Idade Média como portadores do valor da verdade apenas na condição de serem assinalados com o nome do autor”, como “Hipócrates disse”, “Plínio conta”. Essa assinatura representava o indício de que tais discursos estavam destinados a serem recebidos como algo provado55.
Tatiana Salem Levy argumenta que a função-autor está ligada a uma vontade de verdade. Segundo a referida autora, procurar dados do escritor e atribuir um dono ao texto constituem maneiras de garantir uma suposta verdade do que se lê. E acrescenta que, no caso da literatura, isso seria uma contradição, pois a autoria apareceria como um procedimento de controle do discurso. O eu do artista preencheria a função de sujeito do discurso, garantindo, assim, uma origem exterior à palavra. Diz Levy que Foucault não nega a existência de um indivíduo que escreve. Mas, para Foucault, a noção de autor restringe toda a liberdade da palavra literária, inserindo-a num modelo de aprisionamento. É também evidente que os textos foram escritos por seus respectivos criadores. Entretanto, a questão reside no fato de que os textos falam por si, deixando
emergir o ser da linguagem, seguindo um caminho que é o da literatura e não o dos autores. Portanto, o autor, como função, promove a unidade e a origem da significação do discurso56.
Segundo Levy, o reconhecimento da autoria justifica-se pela busca da verdade,
sendo que a criação está na ordem do acontecimento. Assim, o texto, em vez de
promover a eternidade do autor, promove seu assassinato, conforme demonstrado por Barthes em seu texto sobre A morte do autor57, que pode ser considerado o último grau da tendência de despersonalização do autor. Quando se fala a respeito da morte ou extinção do autor, trata-se, obviamente, da função-autor e não do indivíduo “de carne e osso” que cria.
Nesse sentido, tanto Foucault quanto Barthes afirmaram, na década de 1960, que a obra cederia lugar à escritura e o autor, ao ser da linguagem.
Podemos assim dizer que os conceitos de autor e obra estão ligados a uma
concepção humanista da arte e, derrubá-los, conforme diz Levy, seria um gesto de desmoronamento do homem enquanto centro do pensamento58. E lembra que a literatura interessa aos estudos de Foucault exatamente por ele ver nela
a possibilidade de se pensar longe da ditadura do eu, longe das supostas verdades de uma interioridade profunda. (...). Agora, no lugar de sua figura unificadora [o autor] temos a figura plural da própria palavra. A literatura apaga o autor em proveito da linguagem. Ela se volta para si mesma, num movimento de autorreflexão, sem contudo se aprisionar na forma da interioridade59.
Com o desaparecimento do homem, a linguagem retornaria sobre si mesma,
atingindo seu próprio ser. Dessa forma, seria a palavra que passaria a falar e não mais o sujeito, o que representa a transição da Idade Clássica para a Modernidade. Enquanto, na primeira, reinava o discurso representativo, realista, em que a linguagem era um meio para se conhecer as coisas, na última, evidencia-se o fato de que as palavras não dizem as coisas, não as representam, nem as significam. Segundo Levy, na Modernidade, “a literatura instaura, assim, um espaço de contestação do pensamento representativo. É uma nova ontologia que aqui surge: não mais a do ser-homem, mas a do ser linguagem”60.
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47 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
48 Cf. CASTELO BRANCO, Guilherme. Foucault em três tempos: a subjetividade na arqueologia do saber, p. 8 e 9. Ver também CARBONI, G. Direito autoral e autoria colaborativa na economia da informação em rede. São Paulo: Quartier Latin, 2010, especialmente às p. 63-75.
49 Cf. LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze, posições 140 e 722.
50 Cf. LEVY, T. Ob. cit, posição 730.
51 FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior, p. 221.
52 FOUCAULT, Michel. O que é um autor?, p. 274 e 275.
53 Ibidem, p. 275.
54 Cf. CARBONI, G. Ob. cit, p. 68.
55 FOUCAULT, M. Ob. cit., p. 275.
56 LEVY, T. S. Ob. cit., posições 806 e 813.
57 BARTHES, Roland. The death of the author. In: Image-Music-Text. New York: Hill and Wang, 1977. Cf. Seán Burke, Barthes critica em seu ensaio o método de leitura e de crítica que depende de aspectos de identidade do autor – a sua opinião política, contexto histórico, religião, etnia, psicologia, ou outros atributos pessoais ou biográficos –, para refinar o seu significado e evitar que as suas experiências e preconceitos possam servir como explicação do texto. Assim, o leitor deveria separar a obra literária do seu criador, a fim de libertá-la da tirania interpretativa. O significado essencial de uma obra dependeria das impressões do leitor, ao invés das “paixões” ou “sabores” do escritor. Dessa forma, a unidade de um texto não estaria na sua origem, no seu autor, mas sim no seu destino, na sua audiência. O foco passa a não ser mais a criatividade, mas a ideia do autor como um mero escritor, que existe para produzir e não para explicar o trabalho e, portanto, nasce simultaneamente com o texto, sem representar qualquer precedente ou algo superior à escrita. Toda obra seria, então, criada no “aqui e agora” de cada nova leitura, pois a origem do significado estaria na linguagem em si mesma e suas impressões sobre o leitor. BURKE, Seán. Authorship: from Plato to the postmodern – a reader, p. xxiv.
58 Ibidem, posição 824.
59 Ibidem, posições 824, 830 e 838.
4. Subjetivação e Autoria enquanto Formas de Empoderamento
Discorreremos, agora, acerca dos processos de subjetivação (sejam eles autorais ou não) como formas de empoderamento e assujeitamento, em contraposição à produção de singularidade, que é condição para a criação artística enquanto produção de si.
Segundo Luiz Fuganti, o poder não precisa controlar diretamente o indivíduo. Na verdade, para que haja tal controle, basta ao poder produzir o meio imediato onde a vida necessariamente se efetua, como, por exemplo, a linguagem e as leis61.
No campo cultural brasileiro, um dos meios criados pelo poder são as leis de incentivo à cultura. Para Fuganti, a questão não reside no questionamento do meio em si, mas no que cada um faz enquanto parte desse meio. Se, ao criar uma obra de arte, o indivíduo é determinado por algo que vem de fora e não do seu interior, ele se torna passivo. Isso porque, a ação (genericamente considerada) sempre envolve um ato de criação a partir de dentro, ainda que, para tanto, seja necessário um aumento da capacidade de ser afetado pelo que vem de fora. Esse processo deve, então, durar no indivíduo, criando tempos e entretempos próprios que se tornarão combustível para a criação de uma arte voltada a modificar-se a si mesmo62.
Para Fuganti, cultura é o cultivo de maneiras singulares de ser. Percebe-se que, aqui, não estamos falando de maneiras de ser individuais ou mesmo universais, mas sim singulares, que são ativadas na medida em que o meio comum é encontrado. No entanto, diz ele, não é isso o que normalmente ocorre no campo da cultura, pois o que mais se vê são invenções sobre formas prontas ou a mera transgressão. Transgredir, segundo Fuganti, não é o bastante. A criação dissocia-se da transgressão pelo fato de envolver a produção de diferenças, sem entrar na dialética ou no acordo com os padrões estabelecidos63.
Assim, a arte não tem por objetivo dar consciência às pessoas ou ensinar algo a partir de um objeto que ela cria. Antes de gerar uma obra para o público, a arte é um efeito da criação de si. Fuganti entende que, sempre que o homem deixa de ser moral, a estética passa a dominá-lo e, então, a criação desponta como algo interessante e singular, pois, neste caso, a arte vem para nos deslocar, provocar, forçar a criar maneiras de nos variar e de sentir. Fuganti diz que, na maior parte das vezes, isso não acontece, pelo fato de termos medo e desconfiarmos das forças que nos põem em devir, em variação64.
Para que isso possa ocorrer, teríamos que sair dos processos de subjetivação e entrar nos de singularização. Segundo Fuganti, normalmente achamos que há um ganho quando ascendemos ao status de sujeito e – podemos acrescentar – quando passamos a ter direitos reconhecidos por lei. Entretanto, salienta ele, o sujeito sempre pressupõe um assujeitamento. Quando se ascende à condição de sujeito, o que se ganha é autoridade e empoderamento. E complementa, dizendo que só se empodera quem já está impotente. Tal impotência decorreria, para Fuganti, do nosso desfoco com relação ao acontecimento. Ao invés de colocarmos nosso foco na obtenção de mais confiança na vida e nos acontecimentos que nos constituem, de forma a podermos investir na criação de si e de novas realidades, normalmente focamos no julgamento das coisas da vida, entre bem e mal, seja com base na religião ou na moral65.
Nessa linha, as ações culturais e nossas leis no âmbito da cultura deveriam investir na produção de meios propícios, não para dar consciência aos indivíduos com relação às práticas artísticas ou mesmo para empoderá-los perante os demais, mas sim para – nas palavras de Michael Hardt – “encorajar relações úteis e componíveis”66, de forma a que apareçam novos processos de singularização a partir de encontros sociais.
Ainda demandamos muito a tutela da lei para todas as coisas da nossa vida, pois – como diz Fuganti – sem ela não temos horizonte. Na verdade, é esse o projeto da Modernidade, que tem por base o contrato social e a transformação dos indivíduos em cidadãos. Dentro dessa lógica, não poderia ocorrer algo diferente com o criador de obras literárias, artísticas e científicas, que não o seu reconhecimento como cidadão-autor com fundamento na tutela das leis autorais, especialmente, para que ele possa enfrentar as outras instâncias de poder (sejam elas institucionais, de mercado ou do Estado) que também se formam a partir desse projeto da Modernidade.
Não há aqui uma crítica – deixe-se claro –, mas apenas uma revelação quanto ao que está em jogo e ao que se perde ou ganha nos processos de subjetivação, incluindo a autoria. A menos que nosso foco seja deslocado para a criação de si e para os processos de singularização, nossas práticas culturais e artísticas continuarão a seguir a linha do empoderamento por meio de leis, na busca de chancelas sociais, porque é esse o projeto político de nossa era. Como diz Fuganti, não se trata de esperar um “quando isso vier a acontecer”, mas sim de um “sempre que colocamos nosso foco na criação de si e nos nossos processos de singularização, aqui e agora”67. Dito de outra forma, os processos de singularização podem ocorrer independentemente do foco de nossa era estar totalmente voltado para o poder e para as leis.
4. Liberdade de Expressão e Estado Civil
Por fim, verificaremos em que medida se pode articular liberdade de expressão e direito de autor sob a perspectiva do pensamento espinosista no âmbito do estado civil.
Ao se debruçar sobre o Espinosa pensado por Deleuze, Michael Hardt diz que, no estado da natureza, experimentam-se encontros casuais com outros corpos que muitas vezes têm muito pouco em comum com os nossos. Dessa forma, o poder de ser afetado é preenchido predominantemente por afecções tristes. Torna-se, pois, necessário descobrir uma passagem do direito natural para o direito civil, uma vez que a única maneira de tornar o estado da natureza suportável seria lutar para organizar os encontros. O estado civil corresponderia, assim, ao estado da natureza tornado suportável, isto é, “o estado da natureza insuflado pelo projeto de aumento da nossa potência”68.
O projeto político espinosista é orientado para a organização de encontros sociais de modo a encorajar as já mencionadas relações úteis e componíveis. Nessa transformação, a multiplicidade da sociedade se forja na multidão, que tem a capacidade de colocar a normatividade social como direito civil. Essa liberdade da multiplicidade torna-se a liberdade da multidão69.
Contrariamente, o Leviatã de Hobbes “(...) nada mais é senão um homem artificial, de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado”70. Como lembra Eduardo Gonçalves Rocha: “o Leviatã torna-se ‘um’ apenas na medida em que consegue representar a todos, os quais abrem mão de suas liberdades naturais deixando de ser multidão e passando à condição de súditos”. Ao soberano, é creditada essa possibilidade de gerar a unidade. Fora dele, “haveria apenas a multiplicidade de interesses de uma sociedade que assume a verdade-indivíduo como aspecto fundamento do seu universo simbólico” 71. De acordo com Hobbes, a unidade estaria no representante, como “única forma possível de entender a unidade de uma multidão”72.
Giorgio Agamben diz que o soberano institui, assim, um campo de normalidade e é nele que o direito passa a ter vigência, produzindo o sujeito de direito, que é a fonte de legitimidade do soberano. Esta depende do sujeito, que, por sua vez, é formado e adquire contornos dentro da normalidade soberana73.
Segundo Rocha, o raciocínio acima apresenta duas verdades: “a de que o soberano representa a multiplicidade de indivíduos e a de que por meio dele constitui-se o corpo político”. Em outras palavras, “a capacidade de representação estatal necessita de algo ou alguém a ser representado”. E esse alguém, diz Rocha, que é anterior ao próprio representante, é o indivíduo moderno, “igual, senhor do seu discurso e da sua vontade; por conseguinte, portador de responsabilidades. Pode deixar-se submeter ao soberano, ao mesmo tempo em que é constituído como súdito por ele”74.
Verifica-se, portanto, que a ideia de estado civil em Espinosa é oposta àquela concebida por Hobbes e que acabou vingando até os dias atuais. Enquanto Hobbes defende o soberano uno (Leviatã) para representar os interesses de todos, que se tornam súditos a partir de um processo de assujeitamento (sobre o qual se baseia o conceito de sujeito de direito), Espinosa não nega o estado civil, mas o entende como um meio orientado para a organização de encontros sociais que sejam úteis e componíveis no âmbito da liberdade da multidão.
Conforme explica Fernando Dias Andrade, qualquer concepção imaginativa ou supersticiosa a respeito de algo, inclusive do próprio direito, não pode ser tida como racional para Espinosa. Fica, assim, esvaziada a ideia de sujeito de direito, enquanto noção transcendente, posta pelo direito. Para Espinosa, há sujeito ativo ou agente de direito, mas não sujeito de direito. Em termos espinosistas, o agente de direito é um agente de potência. Além do mais, diz Andrade, “não se trata de pôr-se como um sujeito de direitos, mas sim como um sujeito político no âmbito da multidão que nada mais é do que o sujeito coletivo verdadeiramente livre que constrói a política como democracia75.
Para Espinosa, o que diferencia uma lei “boa” de outra “má” é que a primeira auxilia o indivíduo ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades, ao contrário da segunda. Porém, em contraposição à teoria liberal, Espinosa não admite qualquer direito de propriedade ou da personalidade, anteriormente ao estado civil76.
Quanto à liberdade, não há, para Espinosa, qualquer vinculação desta com o direito natural (tanto em sua vertente clássica quanto moderna) ou com o direito positivo. Segundo Francisco de Guimaraens, ainda que Espinosa defenda a não violação da liberdade pelo Estado, sua linha de argumentação não se baseia em um suposto valor destacado da liberdade em relação aos demais direitos. Até porque, para Espinosa, não há fundamento moral que legitime a ordem jurídica. A natureza humana, assim como a natureza de todas as coisas existentes, envolve apenas um esforço em perseverar na existência (o já citado conatus) e nada mais do que isso77.
Espinosa também sustenta a impossibilidade de o Estado conter a liberdade de expressão do pensamento.
A esse respeito, Guimaraens chama a atenção para o fato de que Espinosa não afirma que o Estado não deve restringir as opiniões, mas sim que ele não pode contê-las, o que já distingue o seu pensamento do direito natural moderno. Enquanto uma moral transcendente estabelece deveres que podem ou não se realizar nas ordens jurídicas, Espinosa entende que uma restrição à liberdade de opinião estaria fora do raio de ação do Estado78, conforme se pode observar das seguintes palavras:
Quem tudo quer fixar na lei acaba por assanhar os vícios em vez de os corrigir. Aquilo que não se pode proibir tem necessariamente que se permitir, não obstante os danos que muitas vezes daí advêm. (...) por maior que seja, pois, o direito que têm os supremos poderes sobre todas as coisas, e por muito que os consideremos como intérpretes do direito e da piedade, eles jamais poderão evitar que os homens façam sobre as coisas um juízo que depende da sua própria maneira de ser ou que estejam possuídos desta ou daquela paixão79.
Isso não significa que um ordenamento jurídico que prevê limitações à liberdade de expressão não seria legítimo, mas sim que tais limitações seriam superficiais, uma vez que, segundo Espinosa, é impossível controlar a opinião de todos os cidadãos. Assim, nenhuma promessa de bem futuro ou ameaça de castigo poderia evitar que os seres humanos se expressassem, até porque, de acordo com Espinosa, “os homens raramente conseguem controlar a própria língua”. Dessa forma, o poder público até seria capaz de limitar determinadas opiniões, mas jamais conseguiria proibir a sua manifestação, uma vez que a mente humana é muito mais potente para se manifestar do que os instrumentos de coerção do Estado80.
A função do Estado seria, assim, a de garantir a liberdade como um instrumento a serviço da liberação coletiva e individual da potência de agir81, pois, como diz Fuganti, “violência é não poder se exprimir”82.
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60 Ibidem, posições 861, 868 e 875.
61 FUGANTI, L. Palestra cit.
62 Idem.
63 Idem.
64 Idem.
65 Idem.
66 HARDT, Michael. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia. p. 169.
67 FUGANTI, L. Palestra cit.
68 HARDT, Michael. Ob. cit., p. 169 e 170.
69 Idem.
70 HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, p. 15.
71 ROCHA, Eduardo Gonçalves. Teoria constitucional-democrática e subjetividade: problematizando o sujeito de direito, p. 82 e 147.
72 HOBBES, T. Ob. cit., p. 125.
73 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, p. 32.
74 ROCHA, E. G. Ob. cit., p. 83.
75 ANDRADE, Fernando Dias. Direitos subjetivos na filosofia do direito de Espinosa, p. 35-36.
76 Cf. GATENS, Moira. Imaginary bodies: ethics, power and corporeality, p. 115.
77 GUIMARAENS, F de. Ob. cit., p. 141 e 144.
78 Ibidem, p. 145.
79 SPINOZA, B. de. Tratado teológico-político, Capítulo XX.
80 Ibidem, p. 145 e 148.
81 Ibidem, p. 146.
82 FUGANTI, L. Palestra cit.
Considerações Finais
Tendo em vista que, para Espinosa, a liberdade pressupõe a causa de si – ou seja, é livre quem age segundo si próprio e existe de acordo com a necessidade da natureza – e que a impossibilidade de limitação da liberdade de expressão decorre de questões psíquicas e físicas (jamais morais), o direito de autor, enquanto poder exclusivo de impedir a utilização de uma obra, seja a que título for, constitui limitação ao exercício da plena liberdade de se exprimir sobre obras de outros autores, seja modificando-as ou, a partir delas, criando obras novas. Dessa forma, a imposição de limites à liberdade de expressão criativa pelas leis de direitos autorais pode tornar-se superficial, na medida em que não impede que alguém se manifeste sobre uma obra alheia, já que, segundo Espinosa, a criatividade é mais potente do que os instrumentos legais de coerção das formas de expressão.
Sobre se o direito de autor auxilia no desenvolvimento das potencialidades do indivíduo criador, podemos dizer que há aqui uma indiferença, pelo menos com relação à obra de arte que é fruto da singularidade e criada de forma não intencional – tal qual ocorre com o canto gratuito do pássaro de Messiaen –, uma vez que o encontro com o caos, enquanto gênese do processo criativo, ocorre independentemente da lei ou mesmo do homem. Portanto, o sistema do direito autoral não é condição para a gênese criativa da obra de arte enquanto criação de si.
Se considerarmos que a necessidade de identificação da autoria de uma obra não é constante ao longo da história e que esta foi estruturada em um sistema legal somente na Modernidade, por meio do empoderamento do indivíduo enquanto sujeito que passa a ser titular de um direito sobre aquilo que cria, o direito moral de paternidade se esvazia em uma função-autor que se manifesta historicamente. A mesma Modernidade que cria o sujeito-autor vem a dissolver o eu que fala em um ser da linguagem, por meio do qual quem fala é a própria palavra e não mais o sujeito, o que abre caminho para um questionamento a respeito dos fundamentos clássicos dos direitos morais de autor.
Nesse contexto, o sistema do direito de autor somente poderia encontrar sua legitimidade em uma esfera puramente patrimonial e concorrencial, em virtude da necessidade de remuneração do criador pela utilização de sua obra por terceiros. Se partirmos dessa lógica, de fato, é preciso demandar uma proteção legal da criação artística para que se torne um produto cultural e possa legalmente circular em um meio (mercado cultural) no qual se sobrepõem diversas camadas de poder.
Contudo, é importante termos presente que, como arte empoderada não é arte
potente, o empoderamento do criador pressupõe seu assujeitamento, que é o contrário da produção de si e dos processos de singularização, os quais – vale dizer – sempre ocorrerão, independentemente da tutela da lei.
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