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Plataformas digitais e novos arranjos proprietários

Foto do escritor: Guilherme CarboniGuilherme Carboni



1. INTRODUÇÃO: REDES, ECONOMIAS DE COMPARTILHAMENTO1 E

PLATAFORMAS DIGITAIS


Desde o advento do capitalismo industrial, a economia vem sendo organizada em torno do mercado e do Estado, com preponderância de um ou de outro, dependendo do momento histórico. O mercado atuou como protagonista durante todo o século XIX até os anos 1940, quando o Estado passou a assumir papel significativo na regulação da economia por meio da combinação de políticas de bem-estar social e intervencionismo econômico. A partir de meados dos anos 1970, o protagonismo do mercado renasceu com força sob o ideal do neoliberalismo.


Com a revolução tecnológica do final do século XX, ganharam relevância processos produtivos baseados em rede, nos quais a produção ocorre de forma descentralizada, por meio de trocas entre pares (peer to peer). A informação passa a ser o elemento estruturante desse novo modelo, que veio a ser denominado por Yochai Benkler (2006) de economia da informação em rede.


De acordo com Benkler (2006), a expressão economia da informação vem sendo utilizada desde os anos 1970 para explicar o crescimento significativo da informação como forma de controle do processo produtivo. Apesar de ser frequentemente utilizada para tratar de uma era denominada de pós-industrial, a economia da informação, durante todo o transcorrer do século XX, esteve ligada ao controle dos processos da economia industrial. Benkler (2006) diz que isso é evidente para empresas financeiras e de contabilidade, assim como para as modalidades industriais de organização da produção cultural, como Hollywood, as grandes redes de transmissão de conteúdo e a indústria fonográfica, todas elas construídas com base em um modelo físico de produção cultural.


Nesse modelo, denominado por Benkler (2006) de economia da informação industrial, as indústrias procuraram divulgar seus produtos culturais por meio da realização de cópias de conteúdo voltadas para vendas em larga escala e para a distribuição “em massa”, com um custo marginal bastante baixo ou tendente a zero.

A radical descentralização da inteligência nas redes de comunicação e a crescente importância da informação, do conhecimento, da cultura e das ideias nas atividades econômicas avançadas, levaram-nos ao estágio da economia da informação em rede (BENKLER, 2006). O aspecto mais importante desse novo estágio é a possibilidade que se abre para reverter o foco de controle da economia da informação industrial, especialmente quanto à concentração da produção e à comercialização de bens(BENKLER, 2006). Os altos custos, que sempre estiveram envolvidos na comunicação de informação, conhecimento e cultura, foram, então, distribuídos para toda a sociedade.

Juntas, essas alterações desestabilizaram o estágio industrial da economia da informação (BENKLER, 2006).


Nesse novo modelo, a produção descentralizada tem como base os crescentes modelos de cooperação e trocas entre os indivíduos (BENKLER, 2006). Os exemplos trazidos não por Benkler são: o software livre – criado por milhares de pessoas ao redor do mundo e que é distribuído de forma a que o usuário possa ter acesso ao seu código fonte – e a Wikipedia – a grande enciclopédia online, em várias línguas, desenvolvida com a colaboração de pessoas localizadas em diversas partes do globo2.


Há uma diferença fundamental no que diz respeito ao papel que o mercado representa para a produção de bens materiais e para bens imateriais. Segundo Benkler (2006), há uma tendência a se confiar mais no mercado e em firmas comerciais na produção de bens materiais, como carros ou alimentos industrializados, do que em uma produção por voluntários. No entanto, diz ele, grande parte da informação que utilizamos – como a pesquisa acadêmica não-comercial financiada por instituições sem fins lucrativos e pelo governo e diversos programas de computador que rodam na internet – é produzida fora

do mercado e, apesar disso, ela ainda se torna atrativa. De acordo com Benkler (2006), a resposta econômica a esse fato está em certas características da informação e da cultura, que nos leva a entendê-las como “bens públicos”, ao invés de “bens puramente privados”, ou ainda, “bens econômicos”.


O modelo de economia da informação em rede, teorizado por Benkler, além de

descentralizado, baseia-se em estratégias não proprietárias e não mediadas pelo mercado, no que diz respeito à produção e à divulgação da informação (BENKLER, 2006). Como o custo marginal da informação é zero, o seu valor recai sobre a capacidade humana de comunicação, que hoje representa a essência do novo modelo de produção de informação, conhecimento e cultura (BENKLER, 2006).


Enquanto modelo de organização econômica preponderante do capitalismo industrial, o mercado moderno colocou a propriedade privada no primeiro plano das relações sociais e econômicas (McPHERSON, 1973). Em sua essência, a propriedade privada garante ao seu titular o direito de excluir os outros do uso de um bem material ou imaterial (McPHERSON, 1973).


Entretanto, segundo McPherson (1973), a propriedade privada, enquanto direito de excluir os outros do uso, não mais faria sentido em uma economia baseada em redes. Ao contrário: na complexidade das redes, a propriedade, segundo ele, deveria funcionar de forma inclusiva, enquanto direito de não ser excluído do uso ou dos benefícios advindos dos recursos produtivos de toda a sociedade (McPHERSON, 1973).


Por essa razão, Jeromy Rifkin (2001) disse que a propriedade viria cedendo lugar ao acesso a ativos controlados por redes de fornecedores (como é o caso de Netflix, Spotify e inúmeras outras plataformas digitais, sejam elas de fornecimento de conteúdo ou de bens materiais). Assim, segundo ele, o acesso estaria tomando o lugar das transações de propriedade no mercado (RIFKIN, 2001).


Para Benkler (2004), o compartilhamento de bens é uma modalidade de produção econômica, com a característica de ser uma peer production (ou produção por pares), que é o sistema de produção que depende de ações individuais auto-selecionadas e descentralizadas, ao invés de hierarquicamente atribuídas por meio de autoridades governamentais, gerentes de empresas, professores em sala de aula (BENKLER, 2004).

Segundo Benkler (2004), a descentralização pressupõe condições sob as quais as ações de muitos agentes são eficazes. E, segundo ele, estaríamos assistindo ao surgimento de ações coletivas cada vez mais eficazes, que são descentralizadas e não se apoiam no sistema de preços ou na estrutura gerencial de coordenação (BENKLER, 2004).


Foi essa concepção de economia de compartilhamento que perdurou durante a primeira década do século XXI até a crise financeira internacional de 2008, quando o capital financeiro decidiu investir em algumas startups de plataformas digitais de compartilhamento, como foi o caso do Airbnb3 – conhecida plataforma de compartilhamento de imóveis –, que veio a receber significativo investimento de fundos privados.


O capital financeiro, portanto, capturou a ideia de economia do compartilhamento (sharing economy) da primeira década do século XXI, levando a uma ressignificação do seu conceito em uma forma de organização econômica que Sundararajan (2016) prefere denominar de crowd-based capitalism (algo como capitalismo baseado na multidão), ou ainda, segundo Lobo (2014), capitalismo de plataforma. Hoje, a economia do compartilhamento pode ser entendida como uma economia híbrida (ABRAMOVAY, 2014), pois se trata de uma economia de mercado que possui elementos provenientes da ideia de compartilhamento teorizada na década de 2000.


Uma diferença importante entre a ideia de economia do compartilhamento da década de 2000 e a atual é que, diferentemente da primeira, nos dias de hoje, o foco do compartilhamento não está mais na produção (por pares), mas no consumo (SUNDARARAJAN, 2016).


A partir do final da década de 2000, surgiram diversas plataformas digitais organizadas como empresas com o intuito de intermediar e conectar, de um lado, fornecedores de bens materiais ou imateriais e, de outro, usuários. Dependendo da configuração da plataforma, o compartilhamento nem mesmo está presente, como é o caso das plataformas de comércio eletrônico. E, mesmo naquelas em que o compartilhamento se faz presente, os graus de compartilhamento podem variar.


Apesar de a maior parte das plataformas digitais organizadas como empresas não estarem atuando no campo da produção peer-to-peer, mas em compartilhamento (com maior ou menor grau) no campo do consumo, Juliet Schor (2017) diz que as tecnologias sobre as quais se baseiam “são ferramentas poderosas em potencial para a construção de um movimento social centrado em práticas genuínas de compartilhamento e cooperação”, não apenas no consumo, mas também na produção de bens e serviços.

Entretanto, adverte que, para alcançar esse potencial, é imprescindível que haja a democratização da propriedade e da governança das plataformas digitais (SCHOR, 2017). Portanto, a questão central, colocada por Schor (2017), diz respeito a como aproveitar a economia do compartilhamento para espalhar riqueza.


Se, por um lado, plataformas como Uber4 vêm apostando na ideia de “mercado livre” e nos benefícios que isso pode lhe trazer, há iniciativas de compartilhamento que não visam lucro, mas buscam atender a determinadas necessidades, normalmente em nível comunitário, como ocorre com bibliotecas de ferramentas, bancos de sementes e de tempo e com trocas de alimentos (SCHOR, 2017).


Segundo Schor (2017), a divisão entre plataformas peer-to-peer e business-to-peer é bastante relevante. As primeiras fazem a intermediação entre fornecedores e usuários, ou ainda, entre financiadores e produtores, cobrando comissões nas trocas realizadas, como ocorre, entre outras, com Uber, Airbnb, plataformas de crowdfunding em geral

(SCHOR, 2017). Já nas plataformas business-to-peer, os produtos e serviços são oferecidos por elas mesmas e sua remuneração decorre de cada transação realizada, como nos negócios tradicionais (SCHOR, 2017). Neste último caso, estão, entre outras, as plataformas de locação de bicicletas, patinetes e veículos em geral.


Não é difícil imaginar que há inúmeras questões regulatórias envolvendo plataformas digitais (como responsabilidades perante o consumidor, aspectos trabalhistas, contratuais, tributários) e não é nosso intuito aqui explorar todas elas. Também não discutiremos qual seria o grau mais adequado de regulação: se mais tênue ou mais intenso, apesar de entendermos que a regulação estatal se faz necessária, tendo em vista que há falhas de mercado, assimetrias de informação e número insuficiente de concorrentes entre as plataformas digitais (CARVALHO e MATTIUZZO, 2017).


Nosso propósito, neste artigo, é verificar em que medida novos arranjos proprietários vêm sendo estabelecidos no âmbito das plataformas digitais, resultando em uma democratização da propriedade, no que diz respeito (a) a conteúdo criado de forma colaborativa; (b) ao desenvolvimento de tecnologias e programas de computador; (c) ao cooperativismo de plataforma, enquanto modo de organização de plataformas digitais; e (d) ao equity crowdfunding, como uma das formas de aquisição de propriedade.


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1 Adotamos aqui a expressão economias do compartilhamento, no plural, por concordar com Rafael Zanatta de que “há uma disputa conceitual em andamento entre, de um lado, uma tradição das ciências sociais próxima da antropologia e, de outro, empreendedores do Vale do Silício (EUA) e jornalistas do setor de economias digitais”. Ou seja, entre, de um lado “estudos acadêmicos sobre lógicas cooperativas e de reciprocidade em economias em rede” e, de outro, “o uso comercial, financeiro e midiático do termo” (ZANATTA, 2017). Para solucionar esse impasse, ele defende a utilização da expressão “economias do compartilhamento”, enquanto “sistemas socioeconômicos mediados por tecnologias de informação direcionados ao compartilhamento de recursos para fins de consumo ou de produção” (ZANATTA, 2017).

2 Outros casos envolvendo a criação colaborativa e a utilização de código aberto (que é uma expressão que hoje vem sendo utilizada como metáfora para outras atividades produtivas e não apenas para a produção de software) são examinadas por Dan Tapscott e Anthony D. Williams na obra Wikinomics: como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio. (Trad. de Marcello Lino). Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2007.



2. CONTEÚDO CRIADO DE FORMA COLABORATIVA


A ampliação do alcance da população a ferramentas criativas, em decorrência do seu barateamento, aliada à crescente utilização da internet para a distribuição de conteúdo, tornam ultrapassadas as estruturas hierárquicas de difusão de informações de um para muitos (one-to-many), fazendo surgir novos modelos, nos quais, a origem das informações passa a ser descentralizada (many-to-many). Evidentemente, esse processo não ocorre pela simples substituição de um modelo pelo outro. Como nos processos

evolutivos, tais modelos coexistem (ALMEIDA, 2007).


Todos esses fatores favorecem a ampliação das possibilidades da participação

colaborativa no processo criativo. Destaque-se, ainda, o surgimento de uma miríade de movimentos e grupos e coletivos, formados por diversas pessoas com o objetivo de produzir colaborativamente a partir da contribuição intelectual de cada um de seus membros (CARBONI, 2009a). Basta verificar a explosão das periferias que ocorreu quando a internet se alastrou pelo Brasil e que incluiu, na cena cultural, vozes até então pouco conhecidas (AGUSTINI, 2014).


Além disso, temos, hoje, plataformas digitais que, independentemente de sua forma de organização e do regime proprietário que adotam, propiciam a criação colaborativa. No caso da música, podemos citar como exemplos: Songtree5, Splice6, Blend7, ccMixter8, além de outras.


É evidente que essa possibilidade real de produção descentralizada, por parte dos diversos grupos de criação colaborativa, levanta novas questões relacionadas ao conceito de autoria e aos conceitos de proteção autoral estabelecidos pelas legislações vigentes, gerando discussões sobre quem pode ser considerado autor de uma obra criada e recriada a partir de diversas outras obras e por um número muitas vezes não identificado de colaboradores (ALMEIDA, 2007). E, também, passa a ser objeto de questionamento em que medida a regulamentação atual sobre direitos autorais (originalmente pensada a partir da ótica do produtor individual ou da empresa exploradora do mercado autoral) atende de forma eficaz e justa a essas novas formas de produção e distribuição.


Segundo Costa (2014), a profusão de movimentos e coletivos que se valem da criação colaborativa nos remete às discussões sobre a dicotomia entre diversidade e economia criativa, que foi central no debate havido na primeira década do século XXI, envolvendo a possibilidade de se remixar e compartilhar conteúdos na internet; a criação de espaços comuns (commons) nas redes; novas formas de licenciamento; proteções tecnológicas a conteúdo protegido por direitos autorais; inclusão digital; software livre; cultura livre e copyleft.


No plano jurídico, essa discussão pode ser traduzida pelo embate entre, de um lado, os direitos culturais e de acesso ao conhecimento e, de outro, os direitos de propriedade intelectual (no caso de conteúdo de plataformas digitais, notadamente o direito de autor). É preciso haver um equilíbrio entre eles.


Gilberto Gil (MOREIRA, 2003), durante o seu mandato como Ministro da Cultura, assim se expressou em seu discurso no 1º Congresso Internacional da Propriedade Intelectual, realizado em São Paulo, no dia 31.3.2003:


“é evidente que os interesses econômicos neste ramo de direito são consideráveis. No entanto, é importante salientar que os direitos de propriedade intelectual sempre se pautaram pela busca de um equilíbrio entre os direitos do criador, que deve receber uma justa compensação pelo seu esforço criador, e o conjunto da sociedade, que deve ter garantido o seu direito de acesso à informação, à tecnologia e ao patrimônio cultural comum. Tenho afirmado que não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. O acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num ambiente saudável. Neste sentido, reveste-se da maior importância – no âmbito dos direitos autorais – a busca de uma legislação equilibrada e que tenha como objeto principal a efetiva proteção dos criadores nacionais”.


A nossa legislação autoral (Lei nº 9.610/98) prevê dois institutos jurídicos que

contemplam a titularidade de direitos autorais para a criação pluri-individual: (a) a coautoria; e (b) a obra coletiva. Por obra em coautoria, entende-se aquela que é criada em comum por dois ou mais autores11. Já a obra coletiva corresponde àquela criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma.


O fato é que a legislação dos diversos países em matéria de direitos autorais (ou seja, não apenas a Lei nº 9.610/98) não regula as novas formas de produção colaborativa (CARBONI, 2009a).


O modelo jurídico de coautoria pressupõe o equilíbrio hierárquico entre os indivíduos criadores – os chamados coautores. A eles é dada a prerrogativa de exercerem de comum acordo os direitos relativos à criação, ressalvada a possibilidade de convenção – necessariamente contratual – em sentido contrário (CARBONI, 2009a). A Lei nº 9.610/98 prevê mecanismos de solução de conflitos (como a possibilidade de decisão por maioria, no caso de divergência entre coautores de obra indivisível quanto à sua exploração comercial), os quais, no entanto, mostram-se insuficientes no que diz

respeito à atuação conjunta de um grande número de indivíduos (CARBONI, 2009a).


Por sua vez, para que se configure uma obra coletiva, é preciso haver uma pessoa atuando, de forma centralizada, como organizadora da obra – por ela respondendo, e dela sendo a titular patrimonial. Em outras palavras: na obra coletiva, constrói-se juridicamente uma clara hierarquização entre o “organizador” (que exercita um papel de coordenação e resulta como titular de direitos patrimoniais sobre a obra final) e os autores (aos quais é resguardada a proteção sobre suas criações individuais e dada a possibilidade de explorar comercialmente suas criações, salvo disposição contratual limitadora) (CARBONI, 2009a).


Um dos possíveis elementos característicos da obra colaborativa consiste justamente na coletivização da figura do “organizador”. A possibilidade de que qualquer indivíduo participante ajude a definir os rumos, de maneira significativa – ou seja, a erosão da figura do organizador, em detrimento de uma organização também coletiva –, não encontra guarida em nosso marco regulatório atual. Essa ausência normativa ocasiona incertezas relativas à exploração – seja ela comercial ou não – de obras produzidas sob esse novo modelo organizacional (CARBONI, 2009a).


Outra questão importante diz respeito a uma adequada regulamentação do conceito de domínio público, para que os diversos autores de uma determinada obra colaborativa com fins não comerciais possam ter a opção de, se assim o desejarem, renunciar aos seus direitos autorais (CARBONI, 2009a). Pela lei brasileira, apenas encontram-se em domínio público, as obras cujo prazo de proteção ao direito patrimonial tenha expirado13; aquelas de autores falecidos que não tenham deixado sucessores14; e as de autor desconhecido (neste caso, ressalvada a proteção legal, ainda não plenamente regulada, aos conhecimentos étnicos e tradicionais)15 (CARBONI, 2009a).


Outro potencial impasse decorre da lógica intrínseca dos direitos morais de autor. Pelo regramento atual, aos autores é dado um grande poder discricionário relativo à publicação, modificação e exploração da obra por parte de terceiros (CARBONI, 2009a). Assim, é resguardada aos criadores, a possibilidade de se oporem a determinadas alterações ou formas de exploração, por critérios exclusivamente pessoais.

Essas possibilidades, se exercidas no âmbito de projetos criativos contendo dezenas, quiçá centenas ou milhares de pessoas, pode gerar empecilhos que colocam em xeque as próprias vantagens dessas novas modalidades produtivas e a real aplicabilidade da norma jurídica em situações de criação colaborativa (CARBONI, 2009a).


Para tanto, há que se repensar o embasamento legal e filosófico dos direitos morais, para que os diversos autores no âmbito da obra colaborativa possam, não apenas permitir a alteração de suas parcelas criativas, mas também, quando assim o desejarem, que seus nomes sejam desvinculados da obra, em prol de um nome ou marca coletiva (CARBONI, 2009a).


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9 No relatório elaborado, sob nossa coordenação, pelo Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento (IDCID) e apresentado, em 2007, ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ) sob o título “Direitos Autorais e Internet: Propostas Legislativas para Fomentar o Desenvolvimento e o Acesso ao Conhecimento, tivemos a oportunidade de destacar alguns desafios a serem enfrentados pelo sistema de direitos autorais, no que diz respeito às obras colaborativas.

10 A esse respeito, ver CARBONI, Guilherme. Direito autoral e acesso ao conhecimento: em busca de um equilíbrio. In: Revista Juris da Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares Penteado. Volume 1 - janeiro a junho/2009 – São Paulo: FAAP, 2009, p. 21-46. Disponível em <http://www.faap.br/revista_faap/juris/juris_vol_1_2009.pdf>, acessado em 20 de setembro de 2019.

11 Cf. artigo 5º, inciso VIII, letra “a”, da Lei 9.610/98.

12 Cf. artigo 5º, inciso VIII, letra “h”, da Lei 9.610/98.

13 Cf. artigo 5º, inciso VIII, letra “a”, da Lei nº 9.610/98.

14 Cf. artigo 45, inciso I, da Lei nº 9.610/98.



3. COPROPRIEDADE DE TECNOLOGIAS E PROGRAMAS DE

COMPUTADOR


O surgimento de uma geração de pessoas realizadoras que têm a colaboração e a experimentação como pontos centrais de seus processos nos faz refletir sobre como estimular uma cultura de abertura e de troca entre pares, que, ao mesmo tempo, garanta sustentabilidade financeira e autonomia de suas ações (AGUSTINI, 2014). Essa é a questão central em uma sociedade que ainda mede a inovação pela propriedade intelectual que dela decorre e pelo valor econômico gerado (AGUSTINI, 2014).


Fabricar produtos e produzir soluções em escala global pode, hoje, não ser o melhor caminho, pois, segundo Agustini (2014), é possível tratar cada mercado de forma diferente, de modo a “produzir localmente soluções que se adaptem e sejam mais condizentes com as diversas realidades do globo”. Ainda segundo ela (AGUSTINI, 2014), isso é chave para uma mudança de visão envolvendo um novo modo de produção que gere menos desperdício e que não seja pautado pelo consumo desenfreado.


Mas, a questão central é que os cidadãos não apenas estão mais próximos de quem produz inovação, mas são, eles mesmos, fabricantes de seus próprios produtos, como já ocorre com as impressões 3D. Assim, os cidadãos deixam de ser consumidores passivos e passam a ser produtores, fazendo ressurgir a cultura do do it yourself, que apareceu no início do século XX e foi bastante comum nos anos 1950 (AGUSTINI, 2014).


Em seu livro Makers – a nova revolução industrial, Chris Anderson trata da virtualização de produtos e objetos físicos, a partir do momento em que eles podem ser transformados em informação para serem produzidos localmente e de forma personalizada, especialmente por meio de impressoras 3D (ANDERSON, 2012).


Nesse cenário, é fundamental pensarmos em como as tecnologias, programas de computador, arquitetura de sites e plataformas são criados (e não apenas em como são utilizados), uma vez que sempre carregam determinados direcionamentos de seus criadores e, obviamente, não são neutros.


Os processos de algoritmização das relações sociais, isto é, a redução das relações às lógicas dos aplicativos e plataformas digitais, pode fazer com que a liberdade se transforme em escravidão. Trebor Scholz faz acirrada crítica ao que denomina economia extrativa de compartilhamento, que, segundo ele, caracteriza-se por “mobilizar a linguagem do amor e da contracultura para vender serviços comerciais, muitas vezes ilegalmente” (SCHOLZ, citado por SANTOS, 2017).


Essa crítica de Scholz não tem como intuito eliminar os dispositivos tecnológicos, mas estabelecer uma lógica que seja mais benéfica para os trabalhadores e para a economia local (SANTOS, 2017). Para Scholz, (citado por SANTOS, 2017) “qual é a lógica de se encaminhar para uma empresa do Vale do Silício os lucros da locação de curto prazo no Rio de Janeiro, São Paulo ou Recife, entregues através da plataforma de software Airbnb?”. E acrescenta (SCHOLZ, citado por SANTOS, 2017): “essa economia pode ser operada de forma diferente, justa e em benefício de comunidades locais”.


Outro aspecto que chama a atenção na denominada economia colaborativa de

plataformas digitais são as punições aos prestadores de serviço em virtude de baixos ranqueamentos feitos pelos usuários. Uma equipe de Scholz está construindo um software aberto que pode ser customizado por qualquer um. Seu primeiro conjunto de projetos-piloto inclui o trabalho com 3.000 trabalhadores de creches em Illinois e uma cooperativa de mulheres em Ahmedabad, Índia, que atua no setor de beleza (THOMPSON, 2019). Nos alinhamos a Scholz (citado por THOMPSON, 2019), quando diz que o trabalho se torna mais digno quando os envolvidos estão no seu controle.


Isso remete à possibilidade de controle do código fonte de programas de computador de plataformas digitais entre trabalhadores, ou ainda, entre trabalhadores e usuários. É o que ocorre com a plataforma Up & Go16, que oferece serviços de limpeza residencial em Nova Iorque, EUA. Os profissionais contratados são especialmente treinados para a função e já haviam anteriormente formado cooperativas para a execução desse tipo de trabalho. Nessa plataforma, o código fonte do programa de computador é de propriedade de todos os trabalhadores cooperados, sem a dependência de uma empresa que obtenha lucro sobre eles, e de forma a que todas as decisões tecnológicas sejam tomadas de acordo com as suas próprias decisões (THOMPSON, 2019).


Sob o ponto de vista jurídico, vejamos o que determina a legislação brasileira a respeito das possibilidades de cotitularidade sobre programas de computador.

O artigo 2º da lei do software brasileira (Lei nº 9.609/98) – que regula a proteção de programas de computador por direitos autorais – estabelece o seguinte:


O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.



Isso significa que a Lei nº 9.610/98 (lei de direitos autorais brasileira) aplica-se ao software de forma complementar, ou seja, em tudo o que a Lei nº 9.609/98 (lei do software) não dispuser a respeito.


Dessa forma, o mesmo regime de titularidade para as criações pluri-individuais de obras em geral estabelecido pela Lei nº 9.610/98 (que são: coautoria e obra coletiva) se aplica ao programa de computador.


Para que haja o controle, por parte de trabalhadores e usuários, de programas de computador criados para plataformas digitais, precisamos, inicialmente, verificar quem é o criador (autor), lembrando que se houver mais de um criador, ficará caracterizada a coautoria. Aos criadores é atribuída a autoria. Para que terceiros venham a ser considerados cotitulares dos direitos autorais sobre um código fonte (o que é diferente de ser autor), há que se ter um contrato de cessão dos direitos patrimoniais sobre o programa de computador criado pelo(s) autor(es) aos terceiros que pretendam se tornar cotitulares.


Dessa forma, para uma titularidade conjunta do programa de computador de

determinada plataforma entre trabalhadores ou entre estes e usuários, há que se ter um documento de cessão, firmado entre, de um lado, os criadores do programa e, de outro, os futuros cotitulares.


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15 Cf. artigo 45, inciso II, da Lei nº 9.610/98.



4. COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA


Há uma ilusão de que as empresas da sharing economy estejam, de fato, praticando compartilhamento real (SCHNEIDER, 2014). Apesar de termos visto que o mercado capturou a força das redes na produção por pares – o que ocorreu por meio do desenvolvimento de diversas plataformas digitais que prestam serviços de intermediação de bens e serviços entre produtores e usuários finais, ou ainda, que vendem produtos e serviços diretamente ao mercado –, há outras plataformas que questionam o modelo tradicional da sociedade empresária e vêm buscando se organizar sob novos modelos proprietários.


A forma pela qual as plataformas digitais se organizam no que diz respeito à sua

propriedade é importante, pois cabe ao proprietário decidir quem acumula a riqueza delas advinda e de que forma. Schneider (2014) ressalta que o que vem ocorrendo não é compartilhamento em substituição ao desejo de posse, mas sim, que vêm sendo adotados modelos proprietários com poderes mais igualitários, aprofundando a própria ideia de compartilhamento. Portanto, recolocando o que preconizou Rifkin (2001), a propriedade, segundo Schneider (2014), não deixaria de existir para ceder lugar às redes. Ao contrário: estaria mais viva do que nunca, tendo apenas sofrido alterações na forma como ela se apresenta no âmbito das plataformas digitais.


Há inúmeros exemplos de que a propriedade pode existir de forma mais igualitária e democrática para plataformas digitais. Tanto é que a OuiShare (que é uma rede que conecta empreendedores da economia compartilhada ao redor do mundo) vem priorizando o suporte a projetos baseados em novos modelos de propriedade (SCHNEIDER, 2014), que podem envolver cooperativas, redes de trabalhadores freelancers, trabalhos cooperados com trocas em criptomoedas, plataformas cooperativas controladas por cidades, plataformas de propriedade de produsuários (que é uma junção de produtores e usuários) (SCHOLZ, 2016), entre outras.


Em outros países, podemos citar como exemplos o Lazooz17 (plataforma que se coloca como “oposição” ao Uber em Israel); VTC Cab (concorrente do Uber em Paris); Resonate18 (plataforma de streaming de música); Stocksy19 (plataforma de fotografia); FairMondo20 (visão cooperativa do eBay); Backfeed21 (plataforma para criar cooperativas); Juno22 (plataforma de caronas em Nova Iorque); Modo23 (plataforma de compartilhamento de carros); Tapazz24 (também de compartilhamento de carros); Enspiral25 (plataforma de compartilhamento de projetos); Peerby26 (plataforma de compartilhamento de coisas); Loconomics27 (plataforma de oferecimento de serviços); Sensorica28 (plataforma de lançamento de projetos); L’Atelier Paysan29 (plataforma de pequenos fazendeiros na França).


Zanatta (em comentários a SCHOLZ, 2016) traz os seguintes exemplos de plataformas que se valem de novos arranjos proprietários no Brasil: ZazCar30 (plataforma de compartilhamento de carros); Tem Açúcar?31 (plataforma de empréstimo de utensílios na vizinhança); Loggi32 (plataforma de serviços de entrega com motocicletas sob demanda); Encontre um Nerd33 (plataforma de serviços de assistência técnica em computadores).


Schneider (2014) diz que a plataforma Lyft34 (uma versão cooperativa do eBay) e os trabalhadores da Amazon Mechanical Turk35 estão planejando construir uma plataforma de crowdsourcing36 que eles mesmos possam executar. Cada ideia tem suas especificidades e deficiências, mas o fato é que todos esses movimentos aspiram a uma economia e internet mais igualitárias.


Antonin Léonard, co-fundador da OuiShare, diz que “a sociedade precisa de uma nova narrativa sobre o mundo” e essa narrativa deve ser diferente daquela que algumas plataformas vêm oferecendo (citado por SCHNEIDER, 2014). Segundo essa narrativa, um futuro mais colaborativo e menos desigual poderia estar em nosso horizonte (SCHNEIDER, 2014).


Jeremy Rifkin (2015) pensa da mesma forma ao afirmar que a internet das coisas e as impressoras 3D estão inaugurando uma “sociedade de custo marginal zero” na qual os “commons colaborativos” serão mais competitivos do que as corporações extrativas.


Schneider (2014) afirma que, para fazer negócios de forma diferente, as pessoas terão que mudar seus conceitos sobre quem detém o quê. Kelly (2012) acrescenta que o que define uma era econômica é sua forma de propriedade e, segundo ela, estaríamos entrando em uma nova era devido a todas essas mudanças nos arranjos proprietários que estão em curso.


Segundo Scholz (2016), a sharing economy é somente um outro reflexo do capitalismo.

Por essa razão, diz ele (SCHOLZ, 2016), não se pode falar de plataformas de trabalho “sem antes reconhecer que elas dependem de vidas humanas exploradas em toda sua cadeia de fornecimento global”.


É por esse motivo que vem ganhando corpo em outros países o chamado

cooperativismo de plataforma, que sem dúvida, representa um modelo de propriedade muito mais democrático na organização de plataformas digitais.


O assunto do cooperativismo de plataforma remete à discussão sobre a caracterização do trabalho realizado por colaboradores em plataformas digitais (como é o caso dos motoristas da empresa Uber): se deve haver vínculo trabalhista; se seriam meros colaboradores sem vínculo; ou se deveria ser criada uma nova categoria para esses colaboradores, visando à garantia de direitos mínimos pelo trabalho realizado37.

A “uberização” do trabalho é uma tendência que vem se mostrando cada vez mais forte, em diversas áreas e não somente na de mobilidade urbana. No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão publicada em 4 de setembro de 2019, decidiu que a relação do aplicativo Uber com seus motoristas não caracteriza vínculo empregatício.

Segundo o voto do relator, Ministro Moura Ribeiro, que foi acompanhado pelos demais,


“os motoristas de aplicativo não mantêm relação hierárquica com a empresa Uber porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes. (...). Nesse processo, os motoristas atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa dona da plataforma”.


A economia colaborativa de caráter mais solidário vem crescendo no mundo todo. As cooperativas empregam mais pessoas do que todas as multinacionais juntas (KELLY, 2012).


Nembhard (2014) descreve as cooperativas de negros nos Estados Unidos como uma experiência de ativismo, com raízes nas lutas pelos direitos humanos. Segundo Scholz (2016), a união de cooperativas de consumo no Japão atende a 31% (trinta e um por cento) das unidades familiares do país. A maior corporação industrial da Espanha, a Mondragon, é uma rede de cooperativas que, em 2013, empregava 74.061 pessoas (Scholz, 2016). E, na Emilia-Romagna, região da Itália que incentiva a participação de empregados na propriedade, assim como cooperativas de consumo e agrícolas, a taxa de

desemprego é menor do que a de outras regiões (Scholz, 2016). Além disso, cerca de 40% (quarenta por cento) da agricultura no Brasil e 36% (trinta e seis por cento) do mercado de varejo da Dinamarca são formados por cooperativas (KELLY, 2012).

Portanto, o modelo de cooperativas está mais vivo do que nunca.


No Brasil, os maiores setores do cooperativismo são o agropecuário e o de crédito. Zanatta (em comentários a SCHOLZ, 2016) informa que o Brasil possui mais de 6.500 (seis mil e quinhentas) cooperativas que reúnem 13.000.000 (treze milhões) de cooperados. No entanto, Zanatta (em comentários a SCHOLZ, 2016) pondera que são raras as cooperativas dedicadas ao setor de tecnologia e à prestação de serviços online.

Scholz (2016) comenta que as cooperativas existentes mostraram que garantem empregos mais estáveis e proteções sociais mais confiáveis que modelos extrativos tradicionais. No entanto, destaca (SCHOLZ, 2016) que não podemos enxergar as cooperativas como uma alternativa sem defeitos, lembrando que elas funcionam dentro de um sistema capitalista onde são forçadas a competir.


Segundo Scholz (2016), o cooperativismo de plataforma ocorre em três esferas:

primeiro, ele se baseia na “clonagem do coração tecnológico” de Uber, TaskRabbit38, Airbnb ou UpWork39. Em outras palavras, o cooperativismo de plataforma recepciona a tecnologia, mas coloca o trabalho em um modelo proprietário distinto, mais democrático. Segundo, o cooperativismo abraça o princípio da solidariedade. Isso significa que as plataformas podem ser detidas e operadas por sindicatos inovadores, cidades e por várias outras formas de cooperativas, como as multissetoriais, cooperativas de trabalhadores ou plataformas cooperativas de propriedade de produsuários. Terceiro, o cooperativismo de plataforma tem por base a ressignificação dos conceitos de inovação e eficiência, visando ao benefício de todos.


Scholz (2016) traz os seguintes exemplos de plataformas cooperativas, todas elas em outros países: (a) plataformas cooperativas que fazem intermediação de trabalho online; (b) plataformas cooperativas controladas por cidades; (c) plataformas cooperativas de propriedade de produsuários; e (d) plataformas de trabalho mantidas por sindicatos.

No Brasil, o cooperativismo é regulado pela Constituição Federal, pelo Código Civil e por leis específicas, notadamente, a Lei nº 5.764/71 (Lei Geral das Cooperativas), a Lei nº 12.690/2012 (Lei das Cooperativas de Trabalho) e a Lei nº 9.867/1999 (Lei das Cooperativas Sociais).


De acordo com a Constituição Federal e com a legislação brasileira, não há qualquer impedimento para que empresas de tecnologia e plataformas digitais sejam constituídas sob a forma de cooperativas.


Dessa forma, o cooperativismo de plataforma deve ser trazido ao debate sobre inovação em nosso país, visto que a questão da propriedade sobre a tecnologia e, consequentemente, a forma de organização das pessoas para o seu gerenciamento e controle, é questão fundamental para a abertura e democratização do seu processo produtivo.


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36 O crowdsourcing é um modelo de criação que se vale de mão-de-obra e conhecimento coletivos no desenvolvimento de produtos e soluções.

37 Sobre essa questão, ver KALIL, Renan Bernardi. Direito do trabalho e economia de compartilhamento: apontamentos iniciais. In: Economias do Compartilhamento e o Direito. (Organização de Rafael A.F. Zanatta, Pedro C.B. de Paula e Beatriz Kira). Curitiba: Juruá, 2017, p. 237-257.




5. EQUITY CROWDFUNDING


Não há apenas novos arranjos proprietários para plataformas digitais, como também, outros caminhos para a aquisição de propriedade de plataformas. Nestes casos, as de fato, facilita e democratiza o financiamento empresarial, especialmente por parte dos mais necessitados e vulneráveis.


Segundo estudo realizado por Cumming, Meoli e Vismara (2018), há uma expectativa de que o crowdfunding “democratize” o financiamento empresarial, de forma a possibilitar que minorias possam obter financiamento. Nesse sentido, sexo, idade, etnia e geografia estariam entre os aspectos que mais afetariam a capacidade de obter financiamento, devido às possibilidades de discriminação.


Há duas conclusões importantes no estudo sobre o equity crowdfunding realizado por Cumming, Meoli e Vismara (2018). A primeira é a de que a idade acaba sendo um fator importante, já que empresas com sócios mais jovens são mais propensas a lançar ofertas


de equity crowdfunding do que IPOs41, além de terem maiores chances de completar com sucesso uma oferta por meio da primeira forma. A segunda conclusão é de que há evidências de que o equity crowdfunding alivia algumas fricções econômicas relativas à distância entre empreendedores e investidores, motivo pelo qual empresas localizadas remotamente ficam mais propensas a realizar ofertas de equity crowdfunding do que IPOs e de ter maiores chances de completar com sucesso a oferta da primeira forma (CUMMING, MEOLI e VISMARA, 2018).


No referido estudo, também se constatou que há uma forte presença de mulheres e pessoas pertencentes a grupos minoritários como investidores em equity crowdfunding.

Os autores interpretam que isso se deve à maior sensibilidade de pequenos investidores com relação à etnia dos empreendedores em comparação com investidores profissionais (CUMMING, MEOLI e VISMARA, 2018).


O fato de o resultado dessa pesquisa ter demonstrado que o equity crowdfunding é utilizado de forma mais frequente por pessoas mais jovens, empresas localizadas mais remotamente e, também, mulheres e pessoas pertencentes a grupos minoritários, permite-nos concluir que há, intrinsecamente, em seu formato, uma tendência à democratização do financiamento empresarial por meio dele, sem que se leve em conta,

evidentemente, questões econômicas estruturais, como a diferença de renda existente em nossa sociedade.


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40 Termo criado a partir da junção das palavras “produtor” e “usuário”. A respeito do assunto, ver BRUNS, Axel (2006) Towards produsage: futures for user-led content production. In Sudweeks, Fay and Hrachovec, Herbert and Ess, Charles, Eds. Proceedings Cultural Attitudes towards Communication and Technology 2006, pages pp. 275-284, Tartu, Estonia.




6. REFLEXÕES FINAIS: PROPRIEDADE GENERATIVA VERSUS PROPRIEDADE EXTRATIVISTA EM PLATAFORMAS DIGITAIS


O princípio da solidariedade precisa ser resgatado na regulação dos novos arranjos proprietários na internet. Para Kelly (2012), há, em curso (o que se nota ainda hoje e não apenas quando escreveu seu livro em 2012), uma revolução do conceito de propriedade, que visa ampliar o poder econômico de poucos para muitos, bem como mudar a visão de mundo da indiferença social para o benefício social. Ainda segundo Kelly (2012), nossas escolas nos formam para pensar que existem apenas duas escolhas para o design da economia: propriedade privada e propriedade estatal. Mas, nas palavras de Kelly (2012), “as alternativas que vêm hoje crescendo desafiam essas categorias empoeiradas do século XIX”. E acrescenta (KELLY, 2012), que essa revolução diz respeito à reconstrução das fundações da propriedade sobre a qual a economia se baseia.


Na sharing economy, o uso eficiente e sustentável dos bens – sejam eles materiais ou imateriais – é questão de extrema relevância. É nesse contexto que deve ser pensada a função social da propriedade no âmbito das plataformas digitais.


Pietro Pelingieri (1999) afirma que é necessário estudar os institutos jurídicos em seus dois diferentes aspectos: estrutural e funcional. Para ele (PERLINGIERI, 1999), “a pergunta mais importante não é feita para saber a estrutura do instituto, mas sim a sua função. Para que ele serve? Por que ele é aplicado a esta realidade? Qual a sua razão justificativa?”.


A visão da função social da propriedade passa pelo redimensionamento do direito de propriedade. Em outras palavras: a função social da propriedade não é apenas mais um limite aos poderes proprietários. De acordo com Perlingieri (1971), a concepção de que a propriedade deve ser utilizada de forma solidária, incide sobre a estrutura tradicional da propriedade do seu ponto de vista interno, a tal ponto que se pode sustentar que a função social é a razão mesma pela qual o direito de propriedade é atribuído a um certo sujeito.


Barbosa (2017) diz que o ordenamento jurídico brasileiro, em diversas oportunidades, tutela o “não proprietário” que empenhe função social sobre a titularidade, ainda que contrarie os interesses do proprietário. Portanto, a propriedade deve ser entendida enquanto relação jurídica complexa (LOUREIRO, 2003), uma vez que o proprietário não é o epicentro do foco de proteção, mas sim um dos diversos núcleos de interesse tutelados na relação proprietária, em respeito à ideia de alteridade (BARBOSA, 2017).


A função social da propriedade vem sendo reconhecida como um elemento que viabiliza a concretização de valores. Segundo Fachin (2012), impor uma função importa em determinar uma direção.


No caso dos direitos de propriedade intelectual e, mais especificamente, do direito autoral, a aplicação do princípio da função social da propriedade ao aspecto patrimonial desse direito não se exaure apenas com a imposição de limitações legais ao seu exercício, pois abarcaria, também, reestruturações internas do instituto, como objeto e prazo de proteção, entre outras (CARBONI, 2006).


O artigo 5º, inciso XXIII da nossa Constituição Federal diz que “a propriedade atenderá a sua função social”. Também o artigo 170, inciso III, da nossa Carta Magna, consagra a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica42.

No âmbito da economia do compartilhamento, há inúmeros exemplos de plataformas digitais que estabelecem um design de propriedade com impactos positivos ao meio ambiente e à sustentabilidade, como é o caso daquelas que unem motoristas e passageiros, diminuindo o número de carros na cidade (Souza e Lemos, 2017), bem como aquelas que, ao fazerem a intermediação entre proprietários de bens móveis (como ferramentas e outros utensílios) e usuários, visando à locação do bem, podem auxiliar na diminuição da produção de bens e no seu reuso.


A locação e o compartilhamento de bens materiais também têm relevância no que diz respeito a processos mais sustentáveis de produção, se considerarmos que estimulam indústrias a produzirem bens com maior durabilidade para que possam ser locados por prazos mais longos, sem que se deteriorem precocemente.


Se a função social da propriedade é o princípio que permite a concretização de valores, é no âmbito dela que podemos falar de propriedade generativa, que é aquela que carrega, intrinsecamente, valores de justiça social e de sustentabilidade. Kelly (2012) denomina de propriedade generativa aquela que tem por objetivo a criação de condições de vida de longo prazo, de forma socialmente justa e ecologicamente sustentável e com a formação de redes de suporte coletivo formadas por pessoas com alto índice de engajamento. Em contraposição, a propriedade extrativista teria por objetivo a maximização de lucros a curto prazo, com ausência de engajamento e negociações focadas apenas em questões de preço e lucratividade.


Na economia do compartilhamento, a ideia de propriedade generativa (em

contraposição à de propriedade extrativista), a nosso ver, deve servir como norte para que as relações proprietárias ocorram com justiça social, de forma ecologicamente sustentável e sempre visando a uma melhor distribuição de riqueza.


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41 IPO (Initial Public Offering) indica um processo no mercado financeiro em que uma empresa passa a ser de capital aberto com ações negociadas na bolsa de valores.

42 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)

III – função social da propriedade;




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