top of page
Foto do escritorRodolfo Tamanaha

Aspecto tributários das apostas de quota fixa



1. Introdução

A transformação digital tem impactado a economia e a sociedade de maneira incisiva, tanto com a modificação de modelos de negócios consolidados há décadas, quanto com o impulsionamento de novos modelos de negócios de base tecnológica. Nesse contexto, os jogos e apostas virtuais tem se desenvolvido de maneira intensa.


Com a edição da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023 (“Lei 14.690/23”), foi regulamentada a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa, criada pela Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018 (“Lei 13.756/18”). De acordo com esta Lei, trata-se de “sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico” (art. 29, § 1º). 

Se por um lado a “aposta” é o ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio (art. 2º, I, da Lei 14.690/23), por outro, a “quota fixa” é o fator de multiplicação do valor apostado, que define o montante a ser recebido pelo apostador, caso seja bem-sucedido em seu prognóstico (art. 2º, II, da Lei 14.690/23). Da junção desses dois elementos deflui uma nova modalidade de jogo ou aposta, também conhecido como bet, que tem provocado a movimentação de quantias vultosas – fala-se em R$ 120 bilhões, por ano – e muita controvérsia.


A regulamentação dos jogos e apostas no Brasil não é um assunto novo, haja vista que o artigo 50, da Lei de Contravenções Penais, que proibia a prática ou exploração de jogos de azar, foi restaurado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, por intermédio do Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946, tendo completado 78 anos de vigência. 


De acordo com o artigo 50, da Lei de Contravenções Penais, consideram-se jogos de azar: (i) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; (ii) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; e (iii) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. Da interpretação desse dispositivo, constata-se que a caracterização como jogo de azar pressupõe: (a) a presença da sorte, destino ou acaso (alea lúdica), como elemento preponderante, mas não necessariamente exclusivo, para o resultado; (b) o prêmio convertido em dinheiro; e (c) a aposta de um bem. Com fundamento nesse dispositivo, diversas modalidades de jogos ou apostas foram consideradas ilegais, como o “jogo do bicho”, o cassino e as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. Nessa linha, Nesse contexto, atualmente, no âmbito do Congresso Nacional, existem projetos de lei que visam regulamentar diversas modalidades de jogos e apostas, como o Projeto de Lei nº 442/1991, que dispõe sobre a exploração de jogos e apostas em todo o território nacional, criando o “marco regulatório dos jogos no Brasil”, e os Projetos de Lei nº 2648/2019, e nº 4495/2020, que tratam da exploração de cassinos em complexos de turismo. 

Por outro lado, o Brasil há tempos convive com algumas modalidades de jogos, apostas e atividades assemelhadas, que são consideradas legais. A principal delas é a loteria, que é reconhecida como serviço público monopolizado pela União, que atua nesse segmento por meio da Caixa Econômica Federal, tendo por base, fundamentalmente, a Lei nº 13.756/18, o Decreto-Lei nº 204/67 e o Decreto nº 6.259/44. 


No caso do bingo, sua legalidade sofreu revezes nas últimas décadas, e, embora alguns defendam que se trata de atividade legal, desde que sejam atendidas as exigências legais e/ou autorização específica, conforme previsto na Lei nº 13.204/2015 e na Lei nº 9.981/2000, a jurisprudência dos Tribunais Superiores caminha no sentido inverso.


Com o advento da Lei 13.756/18, criou-se a “aposta esportiva”, tecnicamente designada como aposta de quota fixa, que foi complementada do ponto de vista normativo pela Lei 14.690/23, como uma modalidade de loteria vinculada a eventos esportivos, conforme mencionado acima. Vale observar que um dos fatores que impulsionaram essa modalidade de aposta foi a tecnologia. Isso porque, mesmo durante o período de mais de quatro anos de ausência de regulamentação da Lei 13.756/18, o mercado de bet se desenvolveu exponencialmente, pelo fato das empresas que exploram essa atividade, embora sediadas, em sua maioria, em paraísos fiscais, acessarem o mercado consumidor brasileiro por intermédio de aplicações da internet.

Por fim, deve-se fazer menção a duas inovações trazidas pela Lei 14.690/23. Em primeiro lugar, cabe fazer referência ao fantasy sport. De acordo com o artigo 49, da citada Lei, a atividade de desenvolvimento ou prestação de serviços relacionados ao fantasy sport não se confunde com a exploração de modalidade lotérica, inclusive de aposta de quota fixa, e nem com promoção comercial. Referido “esporte eletrônico” é entendido como aquele em que ocorrem disputas em ambiente virtual, a partir do desempenho de pessoais reais, nas quais: (i) as equipes virtuais sejam formadas de, no mínimo, 2 (duas) pessoas reais, e o desempenho dessas equipes dependa, eminentemente, de conhecimento, análise estatística, estratégia e habilidades dos jogadores; (ii) as regras sejam preestabelecidas; (iii) o valor garantido da premiação independa da quantidade de participantes ou do volume arrecadado com a cobrança das taxas de inscrição; e (iv) os resultados não decorram do resultado ou da atividade isolada de uma única pessoa em competição real.


Em segundo lugar, a Lei 14.690/23 inovou ao regulamentar o jogo on-line como “canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras” (art. 2º, VIII). Essa previsão é complementada pelo inciso subsequente, em que se define como evento virtual de jogo on-line o “evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta” (inciso IX). Trata-se de previsões normativas que têm sido interpretadas como uma autorização legal para a exploração dos serviços de cassino virtual, embora a Secretaria de Prêmios e Apostas – SPA – órgão responsável pela regulação e fiscalização da aposta de quota fixa e outras atividades – não tenha expedido nenhum ato normativo específico sobre o tema. 


Nesse contexto, o presente artigo tem a finalidade de analisar os principais aspectos tributários das apostas de quota fixa, considerando o estágio atual da legislação e, na medida da pertinência para a presente investigação, da jurisprudência dos Tribunais Superiores. 


2. Aspectos tributários

No tocante à tributação da modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa, regulamentada pela Lei 14.690/23, tem-se duas situações que precisam ser avaliadas: (i) o tratamento tributário a ser dispensado às premiações; e (ii) a incidência tributária sobre o agente operador de apostas.


2.1. Tributação dos prêmios


2.1.1 Antes da Lei nº. 14.790/23

Até o advento da legislação que autorizou e regulamentou as apostas de quota fixa, analisada no tópico anterior, a tributação das premiações poderia variar em termos de sistemática de apuração e alíquotas aplicáveis, a depender do tipo de atividade que as gerou. Isso porque, jogos em sentido estrito se definem como situações artificiais de conflito com finalidade de entretenimento, podendo ser dividido em jogos de azar e jogos de habilidade. Enquanto nestes a perícia do jogador interfere significativamente no resultado, naqueles a sorte é o elemento preponderante. 

De acordo com o Parecer Normativo CST nº 173, de 26 de setembro de 1974, da Receita Federal do Brasil – RFB, questiona-se se são tributáveis os prêmios em dinheiro, obtidos em concurso de piano, em competição hípica e em corrida de automóveis. Para analisar essa situação, a RFB estabeleceu uma distinção entre àquelas atividades e os “lucros de prêmios obtidos em loterias e sorteios”. Neste caso, entendeu-se que se aplicaria a legislação então vigente do imposto sobre a renda, que prescrevia a incidência do imposto federal, na fonte, à alíquota de 30% (trinta por cento). Por outro lado, com relação aos prêmios oriundos da participação em competições, entendeu-se que:

“Desse modo exceto se outorgados através de sorteio, refogem à incidência comentada os prêmios conquistados em competições hípicas, em corridas de automóveis e semelhantes. Tais rendimentos não escapam, todavia, à tributação. Outorgados pela avaliação do desempenho dos participantes, assumem o aspecto de remuneração do trabalho e, como tal, são gravados consoante a legislação específica na fonte, como antecipação, e na declaração, classificáveis na cédula C ou D, conforme haja ou não vínculo empregatício entre o beneficiário e a fonte pagadora; ou somente na fonte, se residente ou domiciliado no exterior, o beneficiário, de acordo com o art. 292, § 1º do RIR.” (g. n.)


Percebe-se da fundamentação do ato interpretativo da RFB que se estabeleceu uma diferenciação com relação ao modo de tributar prêmios, tendo em conta a natureza da atividade desempenhada. Restando caracterizada a atividade como sorteio ou aposta, a tributação ocorreria por intermédio da incidência do imposto sobre a renda na fonte, à alíquota de 30% (trinta por cento). O raciocínio seria outro no caso de atividades em que a habilidade e a natureza competitiva fossem evidentes, como os concursos “artísticos, os científicos e os literários”, o mesmo ocorrendo para o “valor dos prêmios distribuídos em concursos de canto, dança, execução instrumental e outros do gênero”.


Posteriormente, por intermédio da Solução de Divergência COSIT nº 9, de 16 de julho de 2012, a RFB seguiu o mesmo racional, apenas tendo o cuidado de detalhar as situações jurídicas possíveis e seus respectivos tratamentos tributários. Primeiramente, o ato interpretativo estabelece uma diferenciação entre beneficiário pessoa física e pessoa jurídica. No caso da pessoa física, na hipótese da ocorrência de concursos artísticos, desportivos, científicos, literários ou a outros títulos assemelhados, com distribuição de prêmios efetuada por pessoa jurídica a pessoa física, deve-se levar em consideração a vinculação (ou não) quanto à avaliação do desempenho dos participantes. 

Caso a vinculação mencionada acima se verifique, entende-se que se trata de hipótese na qual os prêmios assumem o aspecto de remuneração do trabalho, independentemente se distribuídos em dinheiro ou sob a forma de bens e serviços. Neste caso, o imposto sobre a renda incide na fonte, calculado de acordo com a tabela progressiva mensal, a título de antecipação do devido na Declaração de Ajuste Anual (DAA), ou, se o beneficiário for residente no exterior, incide exclusivamente na fonte à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento).


Por outro lado, caso não exista essa vinculação do concurso com a aferição do desempenho dos participantes, e se trate de pagamento de prêmio em dinheiro decorrente de “concursos de prognósticos desportivos e concursos desportivos em geral, compreendidos os de turfe”, o tratamento tributário é diverso. Deve incidir o imposto sobre a renda exclusivamente na fonte, à alíquota de 30% (trinta por cento) ou, se o beneficiário for residente no exterior, à alíquota de 15% (quinze por cento). Na hipótese de o beneficiário ser residente em país com tributação favorecida, este incide exclusivamente na fonte, à alíquota de 25% (vinte e cinco por cento).


2.1.2 Novos contornos tributários com a Lei nº. 14.790/23

A Lei nº. 14.790/23 regulamentou três modalidades de jogos e apostas distintas, a saber: (i) as apostas de quota fixa ou apostas esportivas; (ii) os jogos on-line; e (iii) os fantasy sports. Embora cada modalidade tenha uma natureza jurídica distinta, como discutido anteriormente, um elemento em comum é que o prêmio pago ao vencedor está sujeito à tributação pelo imposto sobre a renda, com base em um regramento comum.

Afirma-se que o tratamento tributário é comum às três modalidades tratadas pela Lei nº. 14.790/23, por dois motivos: primeiro, o § 4º, do art. 31, prevê que as regras de tributação dos prêmios obtidos em apostas de quota fixa aplicar-se-ão ao fantasy sport; em segundo lugar, o legislador prescreveu no art. 3º, que as apostas de quota fixa poderão ter por objeto tanto eventos reais de temática esportiva, quanto “eventos virtuais de jogos on-line” (inciso II). Porém, esse regramento comum do imposto federal somente se consolidou recentemente, após um intenso debate legislativo motivado pelos vetos presidenciais aos parágrafos 1º, 2º e 3º, do artigo 31, da Lei nº. 14.790/23. 

Resumidamente, quando da edição da Lei nº. 14.790/23, o Presidente da República entendeu por vetar alguns dispositivos que tratam da tributação dos prêmios líquidos obtidos em apostas, por uma alega “ofensa à isonomia tributária”, conforme a Mensagem nº 749, de 30 de dezembro de 2023. Em razão desses vetos, com a promulgação da Lei 14.790/23, apenas alguns pontos ficaram claros aos contribuintes: (i) a alíquota do imposto sobre a renda incidente sobre os prêmios ganhos com apostas seria fixa, de 15%; e (ii) a base de cálculo do imposto seria o “prêmio líquido”. Todavia, a aplicação da alíquota e a determinação da base de cálculo geraram algumas controvérsias. 

Isso porque, em sua redação original, a Lei 14.799/23, nos parágrafos contidos no artigo 31, trazia regras claras sobre a forma de cálculo do “prêmio líquido” e a incidência do imposto. Veja-se:

“§ 1º Para os efeitos do disposto neste artigo, considera-se prêmio líquido o resultado positivo auferido nas apostas de quota fixa realizadas a cada ano, após a dedução das perdas incorridas com apostas da mesma natureza.

§ 2º O imposto de que trata o caput deste artigo incidirá sobre os prêmios líquidos que excederem o valor da primeira faixa da tabela progressiva anual do IRPF.


§ 3º O imposto de que trata o caput deste artigo será apurado anualmente e pago até o último dia útil do mês subsequente ao da apuração.”

Em seu texto original, o art. 31, da Lei 14.790/23, era completo suficiente para estabelecer que o prêmio líquido seria considerado o resultado das perdas e ganhos auferidos pelo apostador ao longo de um ano, e que a alíquota de 15% só seria aplicada sobre os ganhos líquidos que excedessem a primeira faixa da tabela progressiva do imposto sobre a renda das pessoas físicas – IRPF.

Com os vetos, a Presidência da República almejou afastar a isenção de R$2.112,98, correspondente à primeira faixa da tabela progressiva do IRPF, além de excluir a periodicidade anual da apuração e impedir a compensação de perdas incorridas com apostas da mesma natureza. Entretanto, como bem notou Rafael Marcondes, no que tange ao fim da faixa de isenção do IRPF para os prêmios líquidos de até R$2.112,98, a iniciativa governamental não logrou êxito,

“pois o Governo não se atentou para a existência de regra geral prevista em outra norma, o artigo 56 da Lei 11.941/09, que assegurava, de forma ampla, a não tributação de prêmios inferiores a esse montante para todas as modalidades lotéricas, incluindo as apostas, conforme reconhecido pela Lei 13.756/18”.


Porém, os vetos presidenciais tornaram controversa o período de apuração do imposto e a possibilidade de compensação de perdas e ganhos. Ato contínuo, foi editada a Instrução Normativa RFB nº 2.191, de 6 de maio de 2024 (“IN 2191/24”), que deveria regulamentar a lei e, dessa maneira, esclarecer qual deveria ser o tratamento a ser dado para os dois pontos assinalados. Nessa instrução normativa, a RFB estabeleceu as seguintes premissas: (i) o prêmio líquido seria a diferença entre o valor do prêmio e o valor apostado, apurado para cada aposta, após o encerramento de evento real de temática esportiva, ou para cada sessão de evento virtual de jogo on-line; (ii) a alíquota de 15% seria aplicada somente sobre o prêmio líquido excedente à primeira faixa de isenção do IRPF; e (iii) o agente operador de apostas seria o responsável pela apuração e pelo recolhimento definitivo do imposto de renda, que seria retido na fonte.


Todavia, a IN 2191/24 poderia ser questionada do ponto de vista da legalidade tributária, materializada no art. 97, incisos III e IV, do Código Tributário Nacional – CTN, e no art. 150, inciso I, da Constituição Federal, na medida em que foram fixados por ato infralegal aspectos importantes da regra matriz de incidência tributária do IRPF no tocante aos prêmios oriundos de apostas. Nesse sentido, esclarece Luis Eduardo Schoueri que:

“o conteúdo da regra da Legalidade Tributária é extraído do ordenamento a partir da combinação dos artigos 146, incisos II e III, e do artigo 150, inciso I, ambos da Constituição, bem como dos artigos 9º, inciso I, e do artigo 97, ambos do CTN: somente lei em sentido formal (isto é, votada pelo Congresso Nacional) pode estabelecer o antecedente e o consequente normativo de um tributo, não sendo admitida qualquer tipo de  delegação para ato infralegal, uma vez que somente a lei – ela mesma – pode estabelecer tais elementos” (g. n.).


Após avaliar os vetos presidenciais, e diante da reação fortemente contrária dos participantes do mercado de apostas, o Congresso Nacional decidiu promulgar as partes vetadas, restabelecendo a sistemática de tributação sobre prêmios contida da redação original do art. 31, da Lei 14.790/23. Com isso, tem-se que, atualmente, a tributação dos prêmios pagos nas apostas deve se dar da seguinte forma:


a) aplica-se a alíquota de 15% sobre o prêmio líquido;


b) o prêmio líquido é considerado o resultado positivo decorrente da compensação entre perdas e ganhos do apostador;


c) o período de apuração das perdas e ganhos com as apostas de mesma natureza é anual;


d) os prêmios líquidos tributáveis são apenas aqueles que excederem a primeira faixa de isenção da tabela progressiva do IRPF; e


e) cabe ao apostador o dever de recolhimento do imposto sobre a renda, que deverá ser informado na sua Declaração de Ajuste Anual – DAA, ao final de cada exercício fiscal.


Estabelecidas as bases da tributação dos prêmios considerando a novel legislação, cabe fazer uma breve menção à Solução de Consulta COSIT nº 61, de 29 de março de 2018. Referido ato interpretativo da RFB foi elaborado a partir de consulta acerca da forma como deveriam ser tributados rendimentos correspondentes a ganhos recebidos devido à realização de apostas on-line em site internacional, cujo servidor de internet se encontra sediado em outro país.

Nesse ato interpretativo, a Receita Federal esclareceu que “os rendimentos recebidos do exterior por pessoa física residente no Brasil, decorrentes de ganhos em apostas on-line, estão sujeitos à tributação sob a forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão), no mês do recebimento”. Em razão disso, o imposto deve ser calculado mediante utilização da tabela progressiva mensal vigente no mês do recebimento e recolhido até o último dia útil do mês subsequente ao do recebimento do rendimento.

Diante da alegação de ausência de previsão legal específica, a citada Solução de Consulta firmou o entendimento de que a tributação pelo imposto sobre a renda deve incidir sobre a integralidade dos ganhos auferidos nas apostas realizadas, não sendo cabível que a base de cálculo seja mensurada a partir da diferença entre os ganhos e as perdas em apostas realizadas no período.


2.2. Tributação do agente operador de apostas


2.2.1 Tratamento tributário específico estabelecido pela legislação de apostas esportivas

Em 14 de julho de 2021, foi editada a Lei nº 14.183 (“Lei 14.183/21”), que promoveu alterações relevantes na Lei 13.756/18, do ponto de vista do tratamento tributário a ser empregado com relação ao agente operador de apostas. 


A primeira alteração substancial diz respeito ao estabelecimento da sistemática do Gross Gaming Revenue – GGR no Brasil, como forma de se tributar a receita obtida pelos agentes operadores de apostas. O GGR é a base de cálculo formada pelo produto da arrecadação com as apostas, descontados os pagamentos dos prêmios e do imposto sobre a renda incidente sobre a premiação (art. 6º, da Lei 14.183/21). De acordo com a Lei, estabelece-se a incidência do somatório de 12% (doze por cento), entre tributos e repasses, sobre o GGR, a saber: contribuição para a seguridade social somada às destinações para a área de educação, segurança pública, esporte, turismo, Ministério da Saúde e algumas entidades da sociedade civil. Os 88% (oitenta e oito por cento) remanescentes devem ser destinados à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador de aposta por quota fixa e demais jogos de apostas.


Dessa forma, percebe-se que, de todas as deduções a serem realizadas sobre o GGR, é certo que nem tudo constitui propriamente tributo. Isso porque, as alíquotas referidas pela Lei 14.183/21 como “destinações” são, tecnicamente, vinculações específicas originadas da prerrogativa da União para propor normas de organização orçamentária acerca do serviço público da Administração Pública federal, com amparo no art. 165, III, e 61, §1º, II, “b”, da Constituição Federal. Isso porque, é importante relembrar que a Lei 13.756/18, em seu art. 29, atribuiu a natureza jurídica de serviço público às apostas de quota fixa, uma vez que se trata de modalidade lotérica. 


No caso da Seguridade Social, observa-se que a contribuição para seguridade social incidente sobre a receita de concursos de prognósticos – tributo, portanto – foi instituída pelo art. 26, da Lei nº 8.212/1999, e que no caso das apostas de quota fixa, corresponde quantitativamente à 10% (dez por cento) calculados sobre os 12% (doze por cento) incidentes sobre o GGR.

Ademais, deve-se ter em conta que a Lei 13.756/18, em seu art. 32, criou uma Taxa de Fiscalização, que é devida pela exploração comercial das apostas de quota fixa, e que tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia. Referida taxa deve incidir mensalmente sobre o produto da arrecadação, após a dedução das importâncias referentes aos (i) prêmios dos apostadores, a (ii) contribuição para a seguridade social e o (iii) imposto sobre a renda incidente sobre os prêmios.


Trata-se, portanto, de uma taxa instituída para custear o poder de polícia exercido pelos entes públicos, com suporte constitucional no artigo 145, II, da Constituição Federal, e regulada pelos artigos 77 e 78 do Código Tributário Nacional. Como lecionada a doutrina, trata-se de um tributo vinculado, cuja base de cálculo não representa uma atuação específica do contribuinte, mas sim do Estado, e somente poderá ser instituída para fazer frente às despesas incorridas pelo ente público em decorrência de ações direcionadas a particulares específicos, devendo traduzir, ainda que de forma aproximada, o custo total com tal fiscalização.


Em vista disso, para que a Taxa de Fiscalização seja considerada hígida, ela deve corresponder ao necessário para promover a “cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador da loteria de apostas de quota fixa mensalmente” (art. 32, § 1º, da Lei 13.756/18). Porém, é interessante observar que a Lei 14.790/23, em seu art. 33, estabelece que o “agente operador deverá utilizar sistemas auditáveis, aos quais deverá ser disponibilizado acesso irrestrito, contínuo e em tempo real ao Ministério da Fazenda, sempre que por este requisitado”. No artigo subsequente, há a previsão de que regulamentação do Ministério da Fazenda disporá sobre o envio ou disponibilização, pelos agentes operadores, de todos os documentos e esclarecimentos que se fizerem necessários para a fiscalização das suas atividades. 


Diante de um realidade econômico-social em que os novos modelos de negócios são, em sua vasta maioria, desmaterializados e digitais – e o caso das apostas esportivas é um bom exemplo –, deve-se avaliar se a Taxa de Fiscalização, nos moldes atuais, atende ao postulado da proporcionalidade, uma vez que as taxas não podem ser fonte de receita, como os impostos. 

Essa observação se alicerça no fato de que a fiscalização a ser promovida pelo Ministério da Fazenda poderá contar com o acesso irrestrito a todos os sistemas virtuais utilizados pela agente operador, além do fato de que caberá ao próprio agente encaminhar a documentação necessária ao agente público responsável, o que, inexoravelmente, ocorrerá de maneira célere por meio digital. 


Por fim, há que se considerar que referida Taxa de Fiscalização se vale de faixas de valores progressivas considerando o respectivo valor mensal de arrecadação, o que poderia suscitar dúvidas acerca da existência de uma “proporção razoável” entre o custo da atividade estatal e a taxa cobrada do contribuinte, conforme a jurisprudência do STF.


2.2.2 Demais incidências tributárias

Além da tributação específica analisada acima, os agentes operadores de apostas estão sujeitos aos demais tributos corporativos previstos na legislação, notadamente, o Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ, a Contribuição sobre o Lucro Líquido – CSLL, e as contribuições ao PIS e à COFINS.


Especificamente sobre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS, tem-se um imposto de competência municipal que é abrangente. Segundo a doutrina, entende-se como serviço tributável “o desempenho de atividade econômica apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo”.

Considerando que a Constituição Federal, em seu art. 156, III, estabelece que os serviços tributáveis serão definidos em lei complementar, a referência à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003 (“LC 116/03”) é constante. Em princípio, poder-se-ia considerar que a atividade desempenhada pelos agentes operadores de aposta corresponde às atividades esportivas previstas no item 6.04, do Anexo da LC 116/03. Entretanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 634.764, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado em 08 de junho de 2020, discutiram-se duas questões constitucionais importantes, e que podem vir a influenciar a forma como se deve tributar as apostas esportivas.


A primeira consistiu em saber se seria constitucional a incidência de ISS sobre exploração da atividade de apostas, tais como a venda de bilhetes, pules ou cupons de apostas, nos moldes do que previsto no item 19, da Lista de Serviços Anexa à Lei Complementar 116/2003, e na legislação anterior, o Decreto-Lei 406/1968, nos itens 60 e 61, conforme a redação dada pela Lei Complementar 56, de 1987.


A segunda foi saber se, estando a atividade de exploração do jogo compreendida no conceito de serviço, a base de cálculo do tributo poderia incluir o valor integral da aposta ou deveria recair apenas sobre o valor dos bilhetes ou ingressos ou ainda sobre outra base tributável.

Com relação à primeira questão, o Ministro Gilmar Mendes assentiu com a incidência do ISS sobre a atividade de apostas, por restar caracterizado o serviço entendido como o esforço humano destinado a oferecer uma utilidade para outrem. Veja-se:

“Ora, os serviços de distribuição e venda de bilhetes e demais produtos de loteria, bingos, cartões, pules ou cupons de apostas (i.e, a exploração de atividade de apostas), a meu entender, enquadram-se perfeitamente no conceito acima exposto, tendo em vista ser uma atividade humana prestada com finalidade econômica. Há, portanto, trabalho (esforço humano) prestado em favor de terceiro.”


No que tange à segunda questão constitucional, a saber, se o ISS incide sobre o valor integral da aposta, se deve recair apenas sobre o valor dos bilhetes ou ingressos, ou ainda sobre outra base tributável. Constata-se que o Ministro Gilmar Mendes realizou um esforço para delimitar a base de cálculo do imposto, ao estabelecer uma distinção, inicialmente, entre o valor do bilhete ou ingresso, sobre o qual deveria incidir o ISS pela prestação de serviço, e o valor total da aposta, que corresponderia à renda do ganhador. Porém, o próprio Ministro reconhece que essa distinção não é tão simples, “uma vez que muitas vezes não se cobra separadamente o valor do bilhete ou ingresso, estando o valor relativo à prestação de serviços incluso no valor da aposta”. 

Para enfrentar essa questão, o voto do Ministro Gilmar Mendes segue no sentido de distinguir o que é renda e o que é remuneração pela prestação do serviço de exploração de apostas. Para tanto, analisa a tributação dos produtos de loteria, e chega ao entendimento de que, mutatis mutandis, seria possível seguir o mesmo racional, ou seja, que a remuneração pela prestação do serviço de exploração da atividade de apostas de corrida de cavalos é retirada do valor pago a título de apostas, e não de forma separada por meio da venda de bilhetes ou ingressos. E conclui que “o ISS pode incidir sobre um percentual do valor da aposta, o qual corresponde ao valor retido pela entidade”.

Como se trata de caso submetido à sistemática da repercussão geral, o STF fixou a seguinte tese: 


"É constitucional a incidência de ISS sobre serviços de distribuição e venda de bilhetes e demais produtos de loteria, bingos, cartões, pules ou cupons de apostas, sorteios e prêmios (item 19 da Lista de Serviços Anexa à Lei Complementar 116/2003). Nesta situação, a base de cálculo do ISS é o valor a ser remunerado pela prestação do serviço, independentemente da cobrança de ingresso, não podendo corresponder ao valor total da aposta.” (g. n.)

Se por um lado considera-se que esse precedente pode influenciar futuras discussões tributárias envolvendo as apostas esportivas, por outro, constata-se que a delimitação da base de cálculo do ISS ainda carece de maior clareza. 


3. Conclusão

Discutiu-se no presente artigo os principais aspectos tributários relacionados à modalidade lotérica conhecida como aposta de quota fixa, criada pela Lei 13.756/18, e regulamentada pela Lei 14.790/23. Referida legislação atendeu um anseio de parte da sociedade que pratica esse tipo de atividade, e que se via carente de segurança jurídica, embora se trate de atividade econômica muito pujante. 


Conclui-se que a legislação atual trouxe mais clareza e previsibilidade com relação à tributação tanto da casa de apostas, quanto do ganhador, embora algumas questões ainda possam ser aperfeiçoadas, como a viabilidade de se manter a Taxa de Fiscalização nos moldes atuais, e a definição da base de cálculo do ISS que poderá incidir sobre as atividades desenvolvidas pelos agentes operadores de apostas. 


Referências

BARRETO, Aires. ISS na Constituição e na Lei. 3ª Edição, 2009.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 35ª. ed. São Paulo: JusPodium/Malheiros Editores, 2024.

MARCONDES, Rafael Marchetti. “Vetos à lei 13.756/23 não interferem na tributação dos prêmios nas apostas esportivas: segue havendo faixa de isenção”. Lei em Campo: o canal do direito desportivo. 05.01.2024.

SCHOUERI, Luís Eduardo; FERREIRA, Diogo Olm; LUZ, Victor Lyra Guimarães. Legalidade tributária e o Supremo Tribunal Federal: uma análise sob a óptica do RE n. 1.043.313 e da ADI n. 5.277. São Paulo: IBDT, 2021.

Comments


bottom of page