As normas e políticas que regem os mecanismos de fomento, apoio e preservação da cultura no Brasil são a expressão, no nível infraconstitucional, de preceitos fundamentais lastreados na Constituição Federal e em instrumentos basilares do Direito Internacional dos Direitos Humanos. São, em última análise, elementos essenciais ao pleno exercício dos direitos culturais, e mesmo da liberdade de expressão, de forma mais ampla. A recusa ou falha sistemática da Administração Pública em conferir eficácia social a esses direitos constituem, ao menos potencialmente, descumprimento de preceito fundamental, sujeito a ação de controle concentrado de constitucionalidade. Nos últimos anos, acumulam-se evidências de retrocesso na implementação dessas políticas públicas, relevadas por atos e omissões que vão da paralisação ou redução drástica de linhas de investimento público aos atos análogos à censura. Por revelarem a prevalência de uma situação de violação generalizada a direito fundamental, com um número am-plo e indeterminado de pessoas afetadas, cuja solução depende da atuação conjunta e coordenada dos diversos órgãos públicos, esse quadro constitui um Estado de Coisas Inconstitucional na gestão das políticas públicas de cultura, com prejuízos severos e de longo prazo para o desenvolvimento sociocultural do país.
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Este texto é a base da palestra proferida pelo autor no XV CODAIP (3 a 5 de novembro de 2021).
SUMÁRIO
Introdução; 1. do apoio à cultura como preceito fundamental da constituição federal; 2. do princípio da proibição de retrocesso aplicado ao exercício de direitos culturais; 3. do estadode coIsas InconstItucIonal pelaInobservâncIasIstêmIcadepreceItosconstItucIonaIsrelacIonadoscomaproduçãodecultu-ra; conclusão; referêncIas.
INTRODUÇÃO
A implementação das políticas públicas de fomento e incentivo à cultura em âmbito federal vem sofrendo evidente retrocesso nos últimos anos, com impactos diretos sobre o fluxo de criação, produção, difusão e preservação de obras artísticas e literárias brasileiras. Essa realidade se faz sentir, com especial ênfase, sobre o segmento de produção indepen-dente – assim compreendidos os produtores que não dispõem dos pró-prios meios de difusão – principal responsável pela diversidade da produ-ção nacional das últimas décadas. Atinge, ainda, órgãos técnicos como a Fundação Palmares, a Cinemateca e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, essenciais para a preservação da memória coletiva e a estabilidade de políticas lastreadas na Constituição.A questão é mais visível na gestão dos processos de seleção e apro-vação de projetos propostos de acordo com a Lei 8.313/1991, a Lei Federal de Incentivo à Cultura (ou “Lei Rouanet”), mas se estende a outros me-canismos de fomento, como o Fundo Setorial do Audiovisual (“FSA”) e os programas da Fundação Nacional das Artes – FUNARTE. Entre 2019 e 2021, houve uma redução drástica no volume de projetos apoiados em to-dos os segmentos, além da imposição, por meio de instrumentos infrale-gais, de condições de acesso não previstas em lei. Em alguns casos, como no cancelamento dos editais da ANCINE sobre temática LGBTQIA+ e da reprovação da edição de 2021 do projeto do Festival de Jazz do Capão, por ser declaradamente “a favor da democracia e contra o fascismo”, chegou--se às raias da censura explícita, sob justificativas que vão do sectarismo ideológico ao fundamentalismo religioso.Juntos, esses elementos formam um cenário alarmante, de conse-quências potencialmente desastrosas para o desenvolvimento econômico e sociocultural do país. Foram, por isso, objeto de recente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal – STF, que os detalha à exaustão, com o propósito específico de obrigar a Administração Pública a cumprir suas obrigações constitucio-nais na matéria.3 Neste breve trabalho, discutiremos até que ponto atos e omissões de agentes públicos que contrariem preceitos constitucionais atinentes à política nacional de cultura – em especial à obrigação do Estado de apoiar o setor e se abster de intervir na liberdade artística e intelectual dos cria-dores – justificam uma ação de controle concentrado de constituciona-lidade no âmbito do STF. Defenderemos que, quando graves, reiteradas e generalizadas, no sentido de que são perpetradas por múltiplos agentes ao mesmo tempo, violações a preceitos fundamentais não podem ser combatidas, de forma eficaz, por meio de ações pulverizadas, destinadas à anulação de atos específicos. É preciso tratá-las de forma integrada e forçar a conformidade constitucional na política como um todo.Em casos como estes, a judicialização em massa não é o melhor caminho, pois ocuparia múltiplas instâncias, com resultados díspares, em prazos variáveis, o que necessariamente permitirá que muitas violações restem impunes, subsistam como prática e se repliquem, adquirindo um caráter sistêmico. O resultado é que, mesmo contrários a preceitos constitucionais, muitos desses atos acabem mantendo seu poder normativo e, assim, funcionam como bloqueios institucionais à plena realização de um direito fundamental.Neste “estado de coisas” – complexo conceito filosófico4 que nas ciências sociais denota uma combinação ordenada de circunstâncias que, a partir do centro de poder, se impõem a todos (ou todo um grupo social) – o cidadão de se vê privado de seu direito, não por um ato ou norma isolados, mas pela própria máquina do Estado, que nessa hipótese age contra os próprios objetivos constitucionais. Daí a possível caracterização de um Estado de Coisas Inconstitucional (“ECI”) na gestão da política nacional de cultura. Aperfeiçoada pela Corte Constitucional da Colômbia, a técnica do ECI não é de simples aplicação, mas o STF já a reconheceu na ADPF 347, sobre violações sistêmicas no sistema penitenciário.5
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4 BARBOSA, Luciano Martins. O conceito de estado de coisas como uma interpretação possível de afiguração do mundo no tractatus lógico-philosophicus. Revista Seara Filosófica, Número 20, Verão/2020, pp. 65-78, p. 70-71. (“Afinal, o que é um estado de coisas? O ‘Tractatus’ nos diz no aforismo 2.01 que ‘O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas)’. Já no aforismo 2.031 diz que ‘No estado de coisas os objetos estão uns para os outros de uma determinada maneira’. Pois bem, como está exposto acima nos aforismos, um estado de coisas se constitui com uma combinação ordenada, articulada de objetos; isso é um princípio preponderante para configurar um estado, agora caso os objetos combinem de uma maneira caótica, desordenada, sem uma ordem, então não configuram estado de coisas nenhum”). Grifamos. Para a obra original de Wittgenstein, cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3ª. Ed. São Paulo: EDUsp, 2020.5BRASIL. STF. ADPF 347/DF. Rel. Min. Marco Aurélio.
1. DO APOIO À CULTURA COMO PRECEITO FUNDAMENTAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Cultura é um direito humano, como saúde, educação, seguran-ça, participação política e seguridade social.6 Não há hierarquia entre direitos fundamentais, que são universais, indivisíveis e igualmente ne-cessários a uma existência digna7. Como esclarece o preâmbulo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos”.8 Uma vida sem liberdade para criar, fruir, celebrar e preservar manifestações artísticas e culturais é incompatível com a noção contemporânea de desenvolvimento humano.A Constituição Federal dedica grande atenção ao tema da cultura, abordado em diversos pontos do texto. No artigo 215, o texto constitucional determina que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Em outras palavras, as políticas de apoio e incentivo à produção cultural não são uma opção programática, dependente da vontade política da Administração Pública, mas um princípio estruturante que se impõe a todos os agentes do Estado, independentemente de viés político-partidário.No artigo 216, a Constituição reconhece os bens de natureza mate-rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, como “patrimônio cultural brasileiro”, por serem portadoras de “referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Logo depois, no 216-A, o texto constitucional cria todo um Sistema Nacional de Cultura, regido por nada menos que 12 princípios, decorrentes da Emenda Constitucional 71/2012. São eles:
diversidade das expressões culturais;
universalização do acesso aos bens e serviços culturais;
fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais;
cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;
integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas;
complementaridade nos papéis dos agentes culturais;
transversalidade das políticas culturais;
autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil;
transparência e compartilhamento das informações;
democratização dos processos decisórios com participação e controle social;
descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações;
ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.
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6 A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que é hoje jus cogens (isto é, uma norma imperativa de Direito Internacional Geral contra a qual qualquer norma ou acordo conflitante são nulos já no nascedouro), estabelece em seu artigo XXVII o direito de toda pessoa à livre participação na vida cultural de sua comunidade, o que naturalmente inclui o direito de produzir e usufruir da cultura local. Ao detalhar esse princípio, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966, determina em seu artigo 15 que os Estados adotem as medidas “necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura”. Cf. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada em 10/12/1948; G.A. Res. 217A (III), U.N. GAOR, 3ª Sessão, U.N. Doc. A/810; assinada pelo Brasil na mesma data). Sobre o enquadramento da DUDH como norma jus cogens, vide, entre outros, PEREIRA, Antônio Celso Alves. As normas de jus cogens e os direitos humanos. RID, v. 6 n. 1 (2009): v.06 n. 1, 2009, p. 37. (“A propósito, vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é vista, hoje, pela melhor doutrina como fonte costumeira de jus cogens. Diante disso, considerando as limitações que, nos dias atuais, são impostas ao Estado pelo Direito Internacional Público para o exercício da soberania, estamos frente a uma realidade político-jurídica que se expressa no fato de que não se pode invocar direitos soberanos para justificar o descumprimento de compromissos internacionais em matéria de direitos humanos”).
7 Flávia Piovesan explica que “a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada”. Piovesan, Flávia. Direitos humanos globais, justiça internacional e o Brasil. Rev. Fund. Esc. Super. MPDFT, Brasília, Ano 8, V. 15, p. 93 – 110, jan./jun. 2000, p. 94. Disponível em: http://www.escolamp.org.br/ARQUI-VOS/15_07.pdf. Acesso em: 4 nov. 2021.
8 ONU. Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, internalizado pelo Decreto 591, de 6 de julho de 1992), Preâmbulo.
No âmbito específico do setor audiovisual, o art. 221 lista a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” como um dos princípios da atividade, o que foi reiterado no julgamento da ADI nº 4679 (2015), que declarou constitucional a Lei 12.485/2011 (“Lei do SEAC”). Em seu voto, o Ministro Relator Luiz Fux lembrou que esses princípios se aplicam a qualquer meio de comunicação, independentemente da tecnologia utilizada:
Na espécie, o respaldo constitucional é expresso no art. 221 da Lei Maior, que estabelece diversos princípios reitores da produção e a da programação das emissoras de rádio e televisão, dentre os quais se destacam a “promoção da cultura nacional e regional e o estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (CRFB, art. 221, II). Logo em seguida, no artigo 222, §3º, incluído pela Emenda Constitucional nº 36/2002, a própria Lei Maior estabelece que “os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais”Esse quadro normativo, a despeito de qualquer convicção política que se tenha sobre o assunto, fornece lastro suficiente para que o Estado brasileiro adote medidas voltadas a promover a cultura nacional e a produção independente (CRFB, art. 221, II), ainda que o veículo comunicativo de que se trate seja a TV por assinatura (CRFB, art. 222, §3º). Foi exatamente o que pretendeu a Lei nº 12.485/11 ao criar a sistemática de cotas para conteúdo e programação [...] 9
As políticas públicas de cultura realizam, no nível infraconstitucional, preceitos fundamentais previstos nos artigos 215, 216, 216-A, 221 e 222 da Constituição Federal. Esse conjunto de preceitos impõe ao Estado a obrigação de prestar apoio oficial à produção cultural brasileira, particu-larmente a de caráter independente. A tais preceitos poderíamos agregar outros, direta ou indiretamente relacionados com a cultura, como a soberania nacional (CF, art. 1º, I), o desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) e a própria liberdade de expressão (CF, art. 5º, IX).
2. DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO APLICADO AO EXERCÍCIO DE DIREITOS CULTURAIS
Todo ato que obste a efetiva implementação de políticas públicas lastreadas na Constituição é, ao menos potencialmente, um ato atentatório a preceitos fundamentais. A violação de um preceito fundamental se torna ainda mais grave quando envolve direitos já regulamentados pela legislação infraconstitucional e à disposição da sociedade, em relação aos quais não é possível retroceder. Trata-se do “princípio da proibição de retrocesso”, assim definido por Luís Roberto Barroso:por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.109BRASIL. ADI nº 4679. Voto do Ministro Relator Luiz Fux, p. 10. Disponível em: ht-tps://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4679.pdf. Acesso em: 4 nov. 2021.10BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas nor-mas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 158.
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9BRASIL. ADI nº 4679. Voto do Ministro Relator Luiz Fux, p. 10. Disponível em: ht-tps://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4679.pdf. Acesso em: 4 nov. 2021.10
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas nor-mas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 158.
A proteção contra o retrocesso em matéria de direitos culturais de-corre, ainda, do próprio PIDESC, que no art. 2º, § 1, impõe aos signatários a obrigação de:
adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
O apoio oficial à cultura é um elemento-chave para a plena realiza-ção dos direitos culturais garantidos a todos por nossa ordem constitucio-nal e pelo direito internacional dos direitos humanos. A implementação desses direitos, como ocorre com muitos direitos econômicos, sociais e culturais, depende, em maior ou menor grau, da disponibilidade de re-cursos públicos. Isso não reduz sua exigibilidade jurídica e a inobservân-cia sistemática desses direitos pode inclusive caracterizar violação ao PI-DESC, como reconhecem a doutrina internacional e a jurisprudência das Nações Unidas.A propósito, a adoção dos chamados “Princípios de Limburg”11sobre a Implementação do PIDESC é um marco definitivo na formação desse consenso. Pelo Princípio 72, um Estado Parte (como o Brasil) terá violado o Pacto se, “inter alia”:
(a) não tomar uma medida expressamente determinada pelo Pacto;
(b) não remover prontamente um obstáculo ao imediato gozo de um direito, quando tal remoção estiver sob sua responsabilidade;
(c) deliberadamente deixar de atingir padrões mínimos internacionalmente aceitáveis para o gozo dos DESC, quando tal atingi-mento estiver ao seu alcance;
(d) limitar um direito reconhecido pelo Pacto sem respaldo no próprio documento;
(e) deliberadamente retardar ou suspender a realização progressiva de um direito, a menos que o faça com base em algum dispositivo do Pacto ou por ausência de recursos ou ainda em caso de força maior;
(f) não submeter os relatórios que está obrigado a submeter em razão do Pacto.12
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11 ONU. ESCOR. The Limburg Principles on the Implementation of the Inter-national Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. Adotado em 8 Jan. 1987, U.N. ESCOR, Comm’n on Hum. Rts., 43d Sess., Item 8 da Agenda, U.N. Doc. E/CN.4/1987/17/Annex (1987). Disponível em: https://www.right-to-education.org/sites/right-to-education.org/files/resource-attachments/UN_Limburg_Princi-ples_1987_En.pdf. Acesso em: 4 nov. 2021. Os Princípios de Limburg foram elaborados em Maastricht, Países Baixos, em 1986, durante uma conferência organizada pela International Commission of Jurists, o Maastricht Centre for Human Rights, da Universidade de Limburg (Países Baixos) e o Urban Morgan Institute of Human Rights, da Universidade de Cincinnati (Estados Unidos). O objetivo da reunião foi o de determinar a natureza e o escopo das obrigações dos Estados Partes do PIDESC e pro-mover uma análise técnica dos direitos e princípios constantes do Pacto. Por iniciativa do governo holandês, os Princípios de Limburg foram mais tarde alçados à categoria de documento oficial da ONU. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos reafirmou a importância dos Princípios de Limburg para a interpretação da natureza e escopo do PIDESC. Cf. ONU.unHcHr, Fact Sheet No. 16 (Rev. 1), The Committee of Economic, Social and Cultural Rights. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/FactSheet16rev.1en.pdf. Acesso em: 4 nov. 2021.
12 ONU. ESCOR. The Limburg Principles on the Implementation of the Interna-tional Covenant on Economic, Social and Cultural Rights... Op. cit. Tradução livre. No original: “72. A State party will be in violation of the Covenant, inter alia, if: – it fails to take a step which it is required to take by the Covenant; – it fails to remove promptly obstacles which it is under a duty to remove to permit the immediate fulfillment of a right; – it fails to implement without delay a right which it is required by the Covenant to provide immediately; – it wilfully fails to meet a generally accepted international minimum standard of achievement, which is within its powers to meet; – it applies a limitation to a right recognized in the Covenant other than in accordance with the Covenant; – it deliberately retards or halts the progressive re-alization of a right, unless it is acting within a limitation permitted by the Covenant or it does so due to a lack of available resources or force majeur; – it fails to submit reports as required under the Covenant”.
As hipóteses listadas no Princípio 72 não são exaustivas, mas refor-çam as diretrizes para a interpretação do Artigo 2 do PIDESC, que trata da natureza “progressiva” das obrigações dos Estados Partes na implementação de direitos econômicos, sociais e culturais. Na prática, isso sig-nifica: (i) usar o máximo de seus recursos disponíveis, incluindo recursos humanos e infraestrutura administrativa; (ii) garantir que os direitos ali previstos sejam exercidos sem qualquer discriminação com base em raça, cor, gênero e outras igualmente injustificáveis, esta última prevista no mesmo art. 2 do PIDESC, no parágrafo 2;13 e (iii) não retroceder em sua realização.
3 DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL PELA INOBSERVÂNCIA SISTÊMICA DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS COM A PRODUÇÃO DE CULTURA
Em 1º de janeiro de 2019, primeiro dia da administração Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi extinto, sendo substituído por uma secretaria especial no âmbito do Ministério da Cidadania. Em agosto do mesmo ano, o então secretário especial pediu exoneração do cargo em protesto contra a Portaria nº 1.576, de 20 de agosto de 2019, que ele próprio comparou à censura. A Portaria, de autoria do ministro da Cidadania, determinou a suspensão da Chamada Pública BRDE/FSA – PRODAV – TVS PÚBLICAS (“Chamada Pública”), voltada ao financiamento de obras audiovisuais com recursos do FSA. Antes disso, o próprio Presidente da República ha-via formulado ruidosas críticas públicas aos projetos selecionados, com base na natureza de seu conteúdo, que tratava da cultura LGBTQIA+.14
A Portaria foi objeto de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal – MPF. Seu impacto, contudo, vai muito além dos pro-dutores que, arbitrariamente, viram-se privados do direito à contratação pelo FSA, direito este legitimamente adquirido segundo regras previa-mente publicadas em edital. O público, em geral, teve negado seu direito de acesso ao resultado desse processo e grupos especialmente vulneráveis da população brasileira tiveram negado o direito de vocalizar suas ques-tões e dar visibilidade à própria experiência cultural. Um filme, uma série ou um documentário, como qualquer obra de arte, são, antes de tudo, meios de expressão.Quando se censura uma obra – e negar arbitrariamente financia-mento a uma produção independente equivale a isso – vozes se calam, de-mandas tornam-se invisíveis, parte da cidadania se esvai. E há o chamado chilling effect. Que produtor, após essa sinalização, voltará ao tema em pro-jeto futuro? Em pelo menos um episódio, é possível dizer que a postura do governo federal contaminou outros níveis da federação: em 2019, o então prefeito do Rio de Janeiro determinou o recolhimento de exemplares de um livro em quadrinhos que estava à venda da Bienal do Livro, porque continha o desenho de beijo entre dois homens, sem aviso na capa sobre o conteúdo “impróprio”.15
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13 ONU. PIDESC, art. 2º, § 2: “Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”.
14 Cf. RODAS, Sérgio. MPF move ação contra ministro por censura a projetos LGBT em edital da Ancine. Consultor Jurídico (2 out 2019). Disponível em: https://www.con-jur.com.br/2019-out-02/mpf-move-acao-ministro-censura-projetos-lgbt. Acesso em: 4 nov. 2021. [“O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro moveu ação civil pública contra o ministro da Cidadania, Osmar Terra, pela prática de ato de improbidade administrativa ao sus-pender edital da (Ancine) que premiava projetos que abordam homossexualidade e diversidade de gênero. O MPF contesta a edição da Portaria 1.576/2019, que suspendeu (...) um edital para seleção de projetos audiovisuais que seriam veiculados nas TVs públicas. Segundo a Procuradoria, a portaria foi motivada por discriminação contra projetos com temática relacionada a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, dentre os quais os documentários Sexo reverso, Transver-sais, Afronte e Religare queer, criticados pelo presidente Jair Bolsonaro (...) em vídeo publicado em 15 de agosto. A suspensão do concurso causou, segundo apurado no inquérito civil, dano ao patrimônio público federal no valor de R$ 1.786.067,44, referente aos gastos já efetuados com sua promoção”].
15 O episódio forçou o decano do STF, Ministro Celso de Mello, a proferir a seguinte declaração: “O que está a acontecer no Rio de Janeiro constitui fato gravíssimo, pois traduz o registro preocupante de que, sob o signo do retrocesso — cuja inspiração resulta das trevas que do-minam o poder do Estado —, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!!! Mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República!!! Uma República fundada no princípio da liberdade e estruturada sob o signo da ideia democrática não pode admitir, sob pena de ser infiel à sua própria razão de ser, que os curadores do poder subvertam valores essenciais como aquele que consagra a liberdade de mani-festação do pensamento!!!!”. Cf. Consultor Jurídico. Celso de Mello vê obscurantismo em censura no Rio de Janeiro. 7 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/celso-mello-ve-obscurantismo-censura-rio-janeiro. Acesso em: 4 nov. 2021.
A esses atos, somam-se muitos outros, inclusive após a transfe-rência da Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo, processo que se iniciou ainda em 2019 e só se completaria formalmente em 2021, gerando incerteza sobre o setor. Ao fim e ao cabo, são esses atos que, combinados, desestruturam políticas públicas essenciais, contrariando as diretrizes constitucionais: nomeações, para posições altamente técnicas, de pessoas sem formação e experiência compatíveis com o cargo, em instituições de referência como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a Fundação Palmares, a Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, o Centro Técnico do Audiovisual – CTAv, e a própria Secretaria Especial de Cultura (que, vale lembrar, teve um secretário exonerado por proferir um discurso público de inspiração abertamente nazista).16Houve, ainda, omissões relacionadas à cota de tela nas salas de exibição, que não foi implementada entre os anos de 2019 – quando um único filme, estrangeiro, chegou a ocupar, simultaneamente, mais de 80% dos cinemas brasileiros17 – e 2021, último ano de vigência da polí-tica. Nesse mesmo período, a política de fomento ao audiovisual foi praticamente paralisada, em especial nas linhas de investimento centradas na produção de obras independentes, reduzida a uma fração do que foi até 2018, quando a produção girava em torno de 200 longas-metragens por ano.
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16 O discurso original de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista, dizia: “A arte alemã da próxima década será heróica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”. O discurso do ex-secretário especial de cultura do Brasil dizia: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”. Cf. GÓES, Bruno; ARAGÃO, Helena; e SOARES, Jussara. Roberto Alvim copia discurso do nazista Joseph Goebbels e causa onda de indignação. O Globo, 16/1/2020.
17 NEUMANN, Isabella.Cota de tela e cota de tela suplementar: histórico, validade e “Vingadores: Ultimato”. Tela Viva (03/5/2019). Disponível em: https://telaviva.com.br/03/05/2019/cota-de-tela-e-cota-de-suplementar-historico-validade-e-vingadoresul-timato/. Acesso em: 4 nov. 2021.
Note-se, ademais, que o fomento público é uma das únicas formas viáveis para a produção de obras audiovisuais cujos direitos de proprie-dade intelectual permaneçam no Brasil, bem como as receitas advindas de sua exploração exclusiva no prazo de proteção. Fora do arcabouço do FSA, produtores independentes tendem a tornar-se meros prestadores de serviço e dificilmente os direitos patrimoniais sobre suas produções per-manecerão no Brasil, que perde uma chance rara de produzir (e reter) capital intelectual em larga escala no país.18Para além do setor audiovisual, outros setores da cultura vêm en-contrando barreiras similares. A Comissão Nacional de Incentivo à Cul-tura – CNIC, responsável pela seleção dos projetos que buscam incentivo federal, está inoperante há quase um ano, o que, na prática, inviabiliza inúmeras iniciativas. Em certos casos, como no Festival de Jazz do Capão, a Administração impôs um tipo de “análise de mérito” expressamente proibido pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, para não mencionar a própria Constituição. Em junho de 2021, a Fundação Palmares publicou Relatório Público 01 CNIRC – “Retrato do Acervo: A Dominação Marxista da Fundação Palmares 1988-2019” e excluiu de seu acervo mais de 5 mil livros considerados “de esquerda” ou ligados a um suposto “marxismo cultural”, 54% do total da biblioteca.19Muitos outros atos, normativos ou não, poderiam ser agregados a essa lista, o que parece indicar:
(a) a prevalência de uma situação de violação generalizada ao di-reito fundamental à cultura do qual o apoio e o incentivo oficial são parte indissociável, com impactos sobre a liberdade de ex-pressão artística;
(b) a existência de um número amplo e indeterminado de pessoas afetadas pelas referidas violações, pois o direito de produzir e acessar cultura livre e plenamente, objeto central das políticas públicas da área, assiste à sociedade como um todo;
(c) a comprovada e reiterada omissão de diversos órgãos públicos no cumprimento de suas obrigações constitucionais relativas à proteção dos direitos culturais (não raro, acompanhada de declarações insultuosas a artistas, obras específicas e ao próprio setor); e
(d) uma questão fático-jurídica cuja solução depende da atuação conjunta e coordenada dos diversos órgãos públicos, de forma a recompor a estrutura normativo-institucional determinada em lei e por preceitos constitucionais.
Essa combinação de fatores caracteriza o chamado “Estado de Coi-sas Inconstitucional”,20 técnica hermenêutica aperfeiçoada pela Corte Constitucional Colombiana21 aplicável a casos especiais, que envolvem violações sistemáticas de um direito fundamental, por ação ou omissão, causadas por agentes públicos variados, com impacto generalizado em um determinado grupo social e potencial de gerar judicialização em mas-sa. O Supremo Tribunal Federal acolheu a tese no contexto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347/DF, que tratava do sistema penitenciário brasileiro. Diz o Informe do STF:
PLENÁRIO. Sistema carcerário: estado de coisas inconstitucional e violação a direito fundamental - O Plenário concluiu o julgamento de medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental em que discutida a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro. Nessa mesma ação também se debate a adoção de providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alegava-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades.22
20 Em artigo no Texas Law Review, César Rodríguez Garavito, um dos autores com maior influência na adoção dessa técnica na Corte Constitucional Colombiana, assim descreve os elementos de caracterização de um “caso estrutural”, que pode refletir um estado de coisas inconstitucional: “I characterize these [structural] cases as judicial proceedings that (1) affect a large number of people who allege a violation of their rights, either directly or through organizations that litigate the cause; (2) implicate multiple government agencies found to be responsible for pervasive public policy failures that contribute to such rights violations; and (3) involve structural injunctive remedies, i.e., enforcement orders whereby courts instruct various government agencies to take coordinated actions to protect the entire affected population and not just the specific complainants in the case”. Cf. GARAVITO, César Rodríguez. Beyond the Courtroom: The Impact of Judicial Activism on Socioeconomic Rights in Latin America. Texas Law Review. Vol. 89:1669, p. 1671. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r27171.pdf. Acesso em: 5 nov. 2021. Cf., ainda., CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodium, 2019. Cf., ainda, CUNHA JUNIOR, Dirley da.O Estado de Coisas Inconstitucional como garantia de direitos fundamentais. Jus Navegandi (Março de 2016). Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47193/o-estado-de-coisas-inconstitucional-como-garantia-de-direitos-fundamentais. Acesso em: 4 nov. 2021.
21 O primeiro caso de reconhecimento de Estado de Coisas Inconstitucional na Colômbia data de novembro de 1997, e tratava da negativa, por parte dos municípios, de paga-mento de determinado benefício previdenciário a professores. Cf. COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentencia SU-559/97 (6 de novembro de 1997). Disponível em: ht-tps://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm. Acesso em: 4 nov. 2021.
22 BRASIL. STF. Informativos 796 e 797. ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9.9.2015.
Mais recentemente, em julho de 2020, o tema do Estado de Coisas Inconstitucional voltou ao STF por meio de decisão monocrática do Ministro Luís Roberto Barroso, que admitiu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO, recebida como ADPF.23 A ação trata dos retrocessos observados na implementação da política ambiental no país. Em um interessante paralelo com o caso da cultura, a decisão lembra ainda que a proteção ambiental não é opção programática, mas uma obrigação constitucional que se impõe à Administração Pública. É a ementa:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL AMBIENTAL. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO GOVERNAMENTAL EM RELAÇÃO AO FUNDO CLIMA E A OUTRAS QUESTÕES AMBIENTAIS. RELEVÂNCIA DA MATÉRIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO E DE COMPROMISSOS INTERNACIONAIS DO BRASIL. CONVOCAÇÃO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA.
Ação direta de inconstitucionalidade por omissão recebida como arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
A mudança climática, o aquecimento da Terra e a preservação das florestas tropicais são questões que se encontram no topo da agenda global. Deficiências no tratamento dessas matérias têm atraído para o Brasil reprovação mundial.
A Constituição brasileira é textual e veemente na consagração do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ademais, impõe ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225).
Além de constituir um direito fundamental em si, o direito ao meio ambiente saudável é internacionalmente reconhecido como pressuposto para o desfrute de outros direitos que integram o mínimo existencial de todo ser humano, como a vida, a saúde, a segurança alimentar e o acesso à água.
São graves as consequências econômicas e sociais advindas de políticas ambientais que descumprem compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A União Europeia e diversos países que importam produtos ligados ao agronegócio brasileiro ameaçam de-nunciar acordos e deixar de adquirir produtos nacionais. Há uma percepção mundial negativa do país nessa matéria.O quadro descrito na petição inicial, se confirmado, revela a ex-istência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambi-ental, a exigir providências de natureza estrutural. Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional.Convocação de audiência pública para apuração dos fatos relevant-es e produção, na medida do possível, de um relato oficial objetivo sobre a situação do quadro ambiental no Brasi”. (Grifamos).
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23 Cf. BRASIL. STF. ADO 60 (ADPF 708). Decisão de Admissão, p. 2. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5930776. Acesso em: 4 nov. 2021.
CONCLUSÃO
Bebida é água, comida é pasto;24 e paz sem voz não é paz, é me-do.25 Nossa cidadania pode mais que isso. Diante do quadro de violações – graves, generalizadas e sistemáticas – no campo dos direitos culturais, notadamente dos múltiplos atos omissivos e omissivos que na prática vêm negando vigência à política cultural brasileira, nos parece perfeita-mente razoável cogitar a existência um Estado de Coisas Inconstitucional na gestão da cultura, que pode e deve ser objeto de ação de controle concentrado na corte suprema, com o objetivo de restabelecer a ordem jurídica constitucional.
A eficácia das políticas de fomento à produção cultural é tema de extrema relevância não apenas para os agentes de mercado e todos que dedicam seu talento e esforços em seu desenvolvimento, mas para o país como um todo. Para além das questões econômicas e de desenvolvimento setorial, a atividade artística é, em si, uma atividade central para a afir-mação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o direito de viver livre de discriminação de qualquer espécie, o direito de participar da vida cultural do país e do mundo, enfim, o direito de celebrar, preser-var e comunicar os saberes e fazeres culturais do povo brasileiro em toda a sua riqueza e diversidade.Assim reza a Constituição Federal, de onde se extraem os princípios que devem guiar todos os atos públicos, entre eles o da legalidade, isono-mia, moralidade e eficiência, que impedem o Estado ou qualquer agente em seu nome de, ainda que indiretamente, interromper arbitrariamente a implementação de uma política pública essencial. Descuidar da cultura seria lamentável para qualquer país em uma era que se autodenomina “da informação”. Para o país da Semana de Arte Moderna, do Cinema Novo, da Bossa Nova e da Tropicália, seria um atentado contra o futuro.
24 ANTUNES, Arnaldo; FROMER Marcelo; BRITTO Sérgio. Comida. WEA., 1987.
25 YUKA, Marcelo; FALCÃO, Marcelo; Xandão; LOBATO, Marcelo; FARIAS, Lauro. Mi-nha Alma. Warner, 1999.
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